sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Crônica - Ironias...

Hoje assumi de vez a condição que camuflo há quatro meses. Com discrição e bom senso. Nada de acordar as seis, abrir a janela e gritar:

– Estou desempregado!

Também não extrai o trecho da música do inesquecível Gonzaguinha e pus a bunda na janela pra passar mão nela. Decidi consciente que era hora de mostrar o rasgo na camisa, lá no sovaco, onde nem agulha de ouro consegue segurar mais o desfiado.

Escondi essa situação o mais que eu pude. Devo ter engolido o veneno amargo da carapuça para tentar evitar a angústia, driblar o vazio e nocautear as dívidas. Tive a impressão que eu vencia ao esvaziar os cofrinhos para liquidar os boletos de cobrança. Que doideira equivocada! Ou melhor, que equívoco louco!

Nesse período de segredo, enfrentei sozinho o ar seco do desespero e contabilizei nas madrugadas não só as contas a serem pagas. Inclui nessa matemática simples, de receitas e despesas, também as dores no peito e a quantidade de batidas do coração no espaço de tempo entre a euforia de uma possibilidade de emprego e a ausência de resposta para a solicitação de análise do currículo.

Não foram poucas as vezes em que me peguei balbuciando perguntas sem respostas, do tipo, com que dinheiro pagar as contas, por que os coordenadores de recursos humanos nem se dão ao trabalho de responder secamente com um não os candidatos indesejados? Eu, por exemplo, daria a esse profissional até o direito de me xingar caso eu respondesse a um anúncio de vaga sem dispor dos requisitos enumerados.

Tenho aprendido muito com o desemprego, a ponto inclusive de redefinir alguns conceitos. A mais básica delas ouvi de um desconhecido numa dessas andanças por lugares incertos, pois o desempregado nunca tem trajeto definido. Ele disse, sem esconder expressão de amargura, justo no momento em que eu passava:

– Desempregado não tem amigos. Eles somem, cortam a volta para não darem de frente com a gente.

À queixa dele somei outro manifesto, este ouvido diante de um bar de cachaceiros de fim de expediente e dito por alguém que resolvera reencontrar ex-colegas para abrir o peito:

– Desemprego é igual doença contagiosa. Todo mundo te evita, amigos, colegas, vizinhos, parentes. Se não se cuidar até a mulher vai embora com outro.

Evidente, entre um gole e outro a platéia, pela expressão facial, se cochichava que ali, falando alto que nem um bêbado, estava um mala disposto a acabar com a paz dos convivas. E olha que o cara nem tinha roubado talagadas de copos alheios. Só havia tomado água de torneira naquele copo seboso que o atendente de balcão reserva para servir quem não tem dinheiro para gastar na mesa.

Mas sabe, os dois guris desprovidos de sorte no trabalho tinham razão. Diziam verdades que eu só assumiria após a consciência do desemprego. Ilustro isso com um acontecido. Outro dia encontrei um amigo de anos, ex-colega de trabalho. Conversa vem, papo rola e surge a pergunta fatal:

– E você, o que está fazendo agora?

Assumi o mané que existe dentro de mim e respondi com outra pergunta, aquela mais idiota que existe:

– Eu?

– É claro, você?

– Agora estou fazendo umas comprinhas pro fim de semana...

O duro era que, no meu cestinho, só tinha um pacote de papel higiênico da promoção leve quatro e pague três.

– Não. Perguntei onde você está trabalhando...

– Estou como... estou como free lancer. Estou trabalhando por conta. Mas está muito difícil ser autônomo nesta região.

No complemento do colóquio, durante o empurra de lá e de cá no corredor apertado do supermercado, aproveitei a deixa e desembestei a falar, misturando relatos e lamentos. Mas eu só havia dito ainda que já havia enviado mais de cem currículos. Mal comecei a reclamar que a minha experiência profissional de 30 anos de nada valia – acho que estava ainda na segunda vírgula – quando o meu interlocutor, com um jeito de enjôo e cansaço, atropelou:

– Tchau, tenho pressa. Qualquer hora a gente se fala...

E lá se foi o meu amigo empurrando um enorme carrinho de compras, que no desajeito quase atropelou o meu cestinho com pacote de higiênico.

Foi uma grande lição. Conclui que pessoas empregadas gostam de um equilíbrio nas conversas quando o assunto é a ocupação profissional. Se você está colocado no mercado de trabalho e a pessoa com quem conversa também, não se exponha a ponto de ele achar que está em pior condição que a sua. Ganhando menos, por exemplo. Ou, com cargo inferior ao seu. Isso desagrada.

E se você está sem trabalho e ele mantém um emprego, não faça cara de choro, não se lamente da situação. Seja tolerante consigo mesmo. Minta que está bem, pois uma boa mentira tem perdão. Não dê a impressão que está pedindo um favor. Não faça comentários brincalhões sobre o tamanho do carrinho de compras dele. Diga que está gozando de férias forçadas e só volta ao trabalho se algo muito bom surgir.

Assim, o seu amigo será tomado por uma inveja tão indisfarsável que ele vai deixar escapar que na empresa onde trabalha abriu uma vaga para o seu perfil. E você, trate de desfazer:

– Ah, mas ali paga muito pouco. Não sei como é que você aguenta.

Quando ele dobrar a esquina do corredor corra para procurar os contatos da tal empresa. Deixe ali mesmo o papel higiênico da promoção. Em último caso, usa-se jornal desses patrocinados por políticos e distribuidos gratuitamente.

Alguém me disse recentemente que colega empregado tem medo de perder a vaga para o colega desempregado. Isso já é exagero, pois que eu saiba o que regula a ocupação e a manutenção de um trabalho é a capacidade profissional. Mas, por favor, desviem o meu olhar de ironia quando escrevo isso.

Outro alguém reforçou que nos processos seletivos, um currículo excelente em experiência profissional é risco do postulante de uma vaga continuar desempregado. De acordo com essa tese, o candidato ao emprego pode crescer tanto e rápido e em pouco tempo ocupar a vaga do empregador. Que exagero...

Cá pra mim, o que vigora são outras coisas: analfabetismo e ignorância, que somados vão dar num cúmulo, sei lá, indescritível. É que nesta era da globalização e de perfis avaliados por títulos, se você não tem ingrês fruente é um guinorante, e se você não tem pós em qualquer coisa fatalmente é um grande narfabeto.

Infelizmente, sou de uma fase em que a experiência profissional, com o conhecimento cultural, o domínio da língua portuguesa e as habilidades técnicas escorando, valia muito mais. Não é assim que os empregadores pensam hoje. Então, chega, né? Tô fora e é onde, pelo jeito, eu vou continuar.