terça-feira, 31 de março de 2009

Enxurrada

Precisava de chuva para lavar a cidade. Daquelas que chegava mansa, após o inesperado apagar do sol por nuvens desordeiras e desordenadas vagando no espaço no rumo que o vento leva. Depois matreira e persistente, do tipo molha e não molha, refrescante no começo, fria depois de algum tempo. Até o encharque, quase grossa feito varetas caindo na diagonal e batendo na pele como pedriscos.
Simone desceu a Sergipe a pé, na direção o prédio velho da Delegacia de Polícia. A terça-feira, logo após o almoço, era de fervura no clima e no destempero dos pensamentos. As roupas expostas nas portas das lojas se confundiam com varais improvisados nas calçadas. Adiante, alguns passos à frente, o cheiro forte de gordura queimada tostava uma massa de pastel de carne. Suores empapavam as costas do pasteleiro na denuncia que fazia a mancha molhada da camisa, enquanto a costa da mão esquerda enxugava as gostas que caiam pelo rosto e a mão direita, escumadeira em punho, virava a guloseima boiando no tacho de óleo escuro.
Simone sentiu náuseas. Cabeça cheia e estômago atravessado, havia reduzido a dieta a uma salada de agrião. A colherada de arroz que colocou no prato sobrou ilesa e ganhou o latão de lixo. A quase abstinência gastronômica tinha um motivo: Simone estava com os dias contados.
Há duas semanas ela havia assinado o aviso prévio na loja onde trabalhava desde o começo do ano retrasado. No momento, Simone encarou a demissão com naturalidade, pois já vinha planejando mudanças e o projeto incluia novos ares, inclusive na profissão. Formada em biblioteconomia, ela havia tentado concursos públicos, com desempenhos desestimulantes nas provas. Então decidiu que se continuasse vendedora, fosse uma comerciária com boa comissão e vendas recorde.
Apostou que não ficaria parada, antes da rescisão haveria de ter um novo emprego. E olha que ela tentou. Visitou empresas de conhecidos, recorreu a colegas, esmiuçou os classificados dos jornais e gastou tempo na internet procurando oferta de vagas. Nos contatos pessoais diziam que havia uma crise mundial e uma mudança local de prefeito. Simone teria que esperar a crise acabar e o prefeito mudar. Nos e-mails a maioria das mensagens com o currículo anexado não retornou. Simone chegou a ter dúvida se aquele negócio estava chegando ao destino. Em algumas empresas Simone deixou o currículo na portaria. Ela se questionava se o envelope havia passado da recepcionista.
Então naquele dia ela se desesperou. Da Sergipe pegaria a Duque de Caxias, subindo para o lado da JK sem se importar com o atraso no retorno do almoço. Passaria de loja em loja se oferecendo. Conseguiria alguma vaga, pois caminhada ao lado da própria persistência. Mas não evitou que os retoques nos olhos manchassem a pele feito olheiras, por causa do suor que desceu da testa e se misturou primeiro com as lágrimas, depois com a chuva e por último com os respingos jogados pelos pneus dos carros, à velocidade sempre acelerada e sobre poças d'água formadas pelas imperfeições do asfalto. Choveu muito naquele dia.