quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Crônica - Os cães, segundo o cotidiano

Um cão de apartamento é um bichinho tinhoso e domina quem trata dele, fazendo-o um serviçal. Sente-se dono absoluto do lugar, late para fazer pirraça, faz sujeira onde lhe convier para chamar a atenção. Incomoda vizinhos, deixa o síndico careca de tanta reclamações, ou a síndica, se for ela, com insônia pelo mesmo motivo. Corre de um lado a outro sobre o piso laminado, sabendo que o barulho das unhas no chão tiram o sossego da mulher do andar de baixo, que trabalhou mais de 30 anos e acabou de se aposentar.

Um cão de casa com quintal é a autoridade do lugar. Rosna quando é exigido a isso, late para quem passa em frente para avisar que ali não é terra sem lei. Acata quem cuida dele, mas com jeito de pouco caso. E corre atrás dos gatos invasores do território alheio. Por isso são quase cães.

Um cão de rua, este sim é supremo e seguro. Não conhece a lei do trânsito, mas sabe quando desviar de um carro em movimento. Conhece os truques sobre quem dele se aproxima. Primeiro pára com certa distância, olha a pessoa que está diante com olhar enigmático, e não se sabe o que é: parece que está rindo, ou que está implorando um afago. Se a pessoa corresponde ele chega mais perto, porém ainda evita cheirá-la. Antes disso testa com reações: senta e deita com as as patinhas jogadas para a frente, língua de fora; coça com as patas traseiras atrás das orelhas; se estica todo, espreguiçando. Se agradou, parte para o fucinhamento, se é que está palavra existe no nosso português. Primeiro nos pés e depois nas pernas, oferecendo achego para receber de volta.

Conheci um cão de rua de belo porte, grande, pelagem marrom, bem clara, orelhas longas, duras e sempre esticadas. Andava pelas proximidades da Avenida Maringá, perto da Rua Ibiporã, aqui em Londrina, e fazia percursos diários pela mesma rota e mesmo horário. Atravessava as duas pistas da Maringá, descia a Ibiporã e chegava ao sobrado onde o morador reservava todos os dias água e comida, no quintal. 

Após satisfeito o cão retornava para a rua e ia ao ponto de ônibus em frente, ver se ali havia alguém. Conhecida ou não a pessoa, ele chegava de mansinho, coçava-se no poste do ponto, e olhava quem estava ali. Se houvesse correspondência, oferecia a cabeça para um carinho. Caso contrário, olhava a pessoa com expressão de feliz e seguia, de retorno ao seu destino.

Um dia cheguei pouco antes no ponto de ônibus e conferi como ele fazia para atravessar as duas pistas da movimentada Avenida Maringá. O cão chegou e parou no semáforo, até que veio uma senhora e se postou ao lado dele, distraída. Quando os sinal abriu a mulher iniciou a travessia, com o cão ao seu lado, aproveitando a carona para atravessar.

Obs.: Isto é uma crônica, com base em observações do cotidiano. Não é e nunca se pretendeu uma abordagem científica. Portanto, não exijam referencias.




sábado, 26 de setembro de 2020

A rua fala e tem história pra contar

 A rua onde Patrícia e Adilson moram tem coisas pequenas e grandes que fazem dela um lugar especial. Cachorros presos nos quintais fazem o seu trabalho de noite e de dia, com latidos agudos e teimosos. Nem assim a rua de Patrícia e Adilson perde a característica de espaço público onde o sossego provoca sensação de paz. Patrícia é formada em matemática e é também engenheira elétrica. Adilson é formado em administração de empresas, mas trabalha atualmente como fotógrafo. O casal ainda não tem filhos. Na frente da casa onde moram há uma placa fincada no outro lado da rua, onde devia ser calçada. Mas o enorme terreno cercado que ocupa um quarteirão não dispõe de tal benfeitoria, pois inexiste qualquer obra no lado de dentro. A placa é um bom aviso aos que passam: “Plante, Cuide e Colherá!” O recado é de Patrícia. Ela nasceu em Cândido Mota, no Estado de São Paulo. A família veio de mudança para Londrina quando Patrícia estava com seis anos de idade. O local escolhido para moradia foi a região do Antares, à margem de uma extensa via que corta parte da cidade do centro ao leste, a Avenida São João. Anos depois, já casada com Adilson, Patrícia continuou no bairro, que apesar de ser conhecido como Antares tem um nome específico, Jardim Tatiane. São, enfim, 25 anos naquela região. E o recado de Patrícia, fincado no outro lado da rua, tem a ver com o que ela faz ali: um pequeno canteiro com hortaliças e girassóis, planta que enfeita com suas flores enormes e alimenta com suas sementes as maritacas que sobrevoam a região. A idéia, conforme revela, era ter alimento para espécie de ave doméstica mantida no quintal. Mas as maritacas, sem cerimônia, se apoderaram do plantio. Em retribuição, as maritacas enfeitam aquela horta quando as sementes estão prontas para serem bicadas por elas. O nome da rua é Alice Sumiko Okajima. É cortada em sua trajetória por uma avenida, a São João, as ruas Anaí, Indaiá, Cunhatai, Diacui, Jurema e, na ponta, a Bartirá, com duas pistas. Em uma das margens, acima da Avenida São João, há uma enorme praça pública, com área arborizada, equipamentos de parque infantil e ginástica ao ar livre, e extensão gramada. Pouco adianta, em outra margem, o muro lateral de um enorme estabelecimento de ensino, o Colégio Estadual Professor João Rodrigues da Silva, de ensino fundamental e médio e também o EJA (Educação de Jovens e Adultos).


O canteiro começou a ser formado por Patrícia há um ano e a dedicação da moradora passou por provações, como a de pessoas que jogavam material descartável onde ela preparava a terra para iniciar o plantio



O muro do Colégio Professor João Rodrigo da Silva estampa um trabalho artístico que chama a atenção



A praça, enorme, com arborização, gramado bem cuidado e equipamentos de parque infantil e ginástica ao ar livre

Jardim, horta, girassóis e maritacas

Adilson Koizumi, marido de Patrícia, é fotógrafo - "setor de criação" - e acompanhou todo o trabalho da esposa na implantação e nos cuidados com o jardim e a horta em frente da casa onde moram, na Rua Alice Sumiko Okajima. Ele emprestou ao blog algumas fotos de sua autoria, para que fossem postadas junto à reportagem que conta a história do casal.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

CRÔNICA - Pouca água

A chuva da manhã de 21 de setembro foi um breve ensaio. Diante de um Paraná acuado pelo baixo nível dos reservatórios de água, principalmente no Litoral e na Região Metropolitana de Curitiba, a estiagem que já dura um ano faz a população do Estado engolir seco. Em Londrina a precipitação de setembro anunciou a chegada da Primavera no dia seguinte, a terça-feira, 22. Minutos antes das oito da manhã, quando a maioria dos trabalhadores, vencendo o isolamento da pandemia do novo coronavírus, iam trabalhar, alguns pingos assanharam ainda mais porque o sol não havia nem despertado. Em instantes e compassadamente o volume de água caindo do céu ganhou volume. Engrossou, como faz tempo não se via. Fez até barulho de enxurrada descendo no rebaixado entre o fim do asfalto e o meio fio. Em pouco tempo havia poças de água formadas em alguns pontos. Na rua, nas calçadas, nos quintais cobertos de cimento. E durou tão pouco... Menos de uma hora e a torneira fechou. O sol ainda esperou mais algum tempo antes de se manifestar com vigor. Um friozinho incomodou até os mais calorentos. Era o último dia do verão de dois mil e vinte. Primavera de vento forte, conforme a previsão havia avisado. Mas o calor disputou seu espaço e frustou quem apostou no uso de agasalhos. Nos lares, até cobertas mais pesadas já haviam sido guardadas. A chuva da véspera da Primavera trouxe, ainda assim, um alívio. Lavou a poeira e, se não foi suficiente para pintar as folhas das árvores de verde, deu a elas uma cor de lavadas pela natureza. As previsões não animam: chuva boa, talvez, só em fevereiro do ano que vem. As fotos são de antes, quando a precipitação era esperada. A vegetação, sedenta, sofria. Mas resistia.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Crônica - Chuva...

Chegou sem fazer alarde, disfarçando o peso da ausência prolongada ao ceder à estiagem a prevalência da seca e da poeira. Pingou ralinho aqui e ali, borrando levemente os vidros das janelas das casas com o marrom da sujeira. Ainda assim causou alegria. Há tanto tempo, afinal, ela não vinha. Logo parou, desafiadora, como se avisando: ``Paro se me convier...`` Refém do tempo, a mulher contou as peças de roupas a serem lavadas. E eram muitas. Mas ponderou, falando consigo mesma: ``Acumula para amanhã ou depois, mas a chuva é bem vinda. Que venha e fique por bom tempo``. Lá embaixo, onde a água é cara e por isso não chega nas torneiras, o homem de idade avançada aproveitou os latões de tintas feitos baldes e os enfileirou sob as goteiras formadas pelas dobras do plástico negro que cobria parte da varanda do puxadinho usado como moradia. Água para beber, lavar, banhar, cozinhar, viver. Já nessa hora a chuva descia grossa, persistente, fazendo quase um frio na manhã de uma primavera que havia começado justo naquele dia, muito quente. O menino, preso numa quarentena que ele compreendia de longe, mais por causa da máscara que é obrigado a usar do que por conhecimento da causa, se imaginou brincando de escorrega na enxurrada da rua sem asfalto que desce para um matagal. Lá em cima, na parte mais nobre do bairro, houve um garoto que pousou o smartphone na mesa e espiou a molhaceira lá fora. Um dia, ainda mais novo, o pai havia ensinado a fazer um barco de papel. Mas esqueceu como era e recorreu ao telefone, inseparável, onde pesquisou sobre veleiros de verdade levados pelas correntes de ar. O síndico do condomínio luxuoso fincado verticalmente num bairro de luxo dispensou as faxineiras da tarefa de uma empurrar o esguicho elétrico e outra varrer a sujeira com a água. Por algum tempo, enquanto a chuva caiu, os aparelhos de ar condicionado se calaram de seu barulho enjoativo e economizaram energia. O esguichou poupou o tão esperado líquido, pois a água caiu do céu. Na periferia, o homem, já aposentado, reclamou que não poderia queimar no quintal as folhas secas que caíram das árvores no fim de semana. E não se fez, por sorte dos vizinhos, fumaça e poluição durante a chuva. Parecia que a terra ressurgia enquanto a chuva, ainda que tímida, pintava as copas das árvores de verde.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Falando Bem ou Mal - Meu condomínio é um canteiro de obras

Aqui a pandemia nunca começou. Aconteceu que, na calda das verdades e das inverdades de uma minúscula espécie assassina, meus vizinhos de classe média pararam, seguindo modelo de outros povos de perto ou distantes, e se obrigaram a ficar em casa para evitar o desconforto de sair com máscaras. Regras visíveis aos de longe respeitadas. Determinações próximas desconsideradas. "Não pode fazer obra no condomínio? Quem inventou isso?" E chegaram caminhões com cimento, areia, pisos, latas de tinta. Muitos. Com eles os carregadores, alguns jovens, outros na fase do "típico fulano com comorbidade". O piso transportado por eles nem sempre respeitou os decretos de isolamento. E as máscaras, com a força e a respiração ofegante, caiam nos queixos. Crianças subiam e desciam brincando nos elevadores. As escadas viraram esconderijos para brincadeiras de corre-corre. E o barulho irritante das marretas quebrando concreto? Serra elétrica, parafusador recarregável, furadeiras e outros apetrechos barulhentos subiam e desciam, como se a ordem fosse "fazer barulho" para espantar os bichinhos. No outro lado da rua, não uma, mas tantas vezes, o aparador da minúscula área gramada do condomínio trouxe sua equipe para competir. Dois homens com cortadores, um elétrico e outro de combustível, além de um terceiro com o assoprador atormentante, gastaram um dia inteiro para fazer o que um jardineiro com ferramentas tradicionais faria em metade do tempo, sozinho. E foram embora ainda com a luz do sol, máscaras cobrindo os queixos, deixando no meio da rua e nas calçadas dos vizinhos o resto que o assoprador não escondeu embaixo dos carros. Festa não teve, isso pode ser garantido. Mas uns e outros ajuntaram visitas nas sacadas e consumiram cervejas. Deu para perceber quando as mulheres começaram a falar mais do que a potência de suas vozes, gritando para serem ouvidas, e os homens, hiláricos e hilariantes, riam de qualquer coisa sem graça. Se um inseto passava e raspava na cabeça de um, aquilo era motivo de gargalhada. Coisa de louco. Será?