sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Memória - Um dia de Finados

Artigo escrito por Osvaldo S. Martins, leitor e grande colaborar do administrador do blog, Walter Ogama, com pautas e inclusive apoio em pesquisas na produção de reportagens


Osvaldo S. Martins

                A vida acontece cotidianamente de um jeito tão coordenada que, às vezes, achamos que ela jamais chegará ao fim.
                Mas quando, despreocupados, nos acostumamos com essa possibilidade, eis que o inesperado nos bate à porta. Ou, pode se dizer, o esperado momento se faz presente e a vida é ceifada.
                Morte, passagem ou termos populares, como “bateu as botas” ou “ajuntou os pés”, são algumas das denominações dadas a esse episódio. Evidente, a humanidade e suas diferentes culturas tratam do breve, porém eterno momento da morte, com suas peculiaridades.
                A questão é que tudo o que projetamos quando criança, tudo o que alimentamos na adolescência e fizemos na juventude para alicerçar nossa vida, se acaba em um último suspiro.
                Talvez o derradeiro olhar ao redor seja ainda suficiente para entendermos que o bem material foi superficial à nossa vida. As poupanças que fizemos, por exemplo, em detrimento de conforto não relacionado ao monetário. Uma viagem, uma reunião de família, um livro por mês, um cinema por semana.
                Tanto deixamos para trás com medo de no futuro a vida nos fazer voltar a ser apenas pessoas, sem nada além da própria pele que nos cobre. Bens materiais, enfim, no eterno confronta com os valores humanos.
                Pois assim é vida, feita de variadas etapas e tempo distinto para cada um de nós. De um jeito simples podemos dizer que o destino de todos os mortais é o que acima chamamos de inesperado, embora pontual. Mais cedo para uns, mais tarde para outros.
                E é ali, no cemitério, que nos tornamos raízes do nada. Na quietude, onde o silêncio é a voz que mais se ouve e onde todos permanecem enfileirados, em uma única posição.
                No dia dedicado aos mortos nos embrenhamos a caminhar entre sepulturas. Voltamos ao tempo e imaginamos assistir um melancólico filme sobre o passado.
                Percebemos que a velha mania de criança, de observar os pequenos montes de terra, com uma cruz  fincada e ornamentada com uma coroa de flores de lata, tudo cercado de balaústres, é a lembrança física que resta de um ente que se foi.
                E se o cemitério ficou moderno, com construções em mármore ou granito no lugar onde antes só havia a terra e a cruz,  o mesmo não se diz da morte. Ela permaneceu como era na antiguidade e será assim no futuro, levando a cada instante uma vida. Vida de um segundo, um minuto, uma hora, dias, semanas, anos e vida de uma vida toda.
                Até as letras manualmente escritas nas cruzes de madeira deram lugar a elegantes placas de metal, com frases ou pensamentos cuidadosamente elaborados, ao lado de fotos coloridas. Um olhar e uma lembrança. Uma foto e uma história que ela resgata.
                O que nos mostra que o sentimento de quem fica também é imune à mudança. Ontem e hoje as mensagens gravadas nas lápides são de muita tristeza e saudade. Seria a dor da perda, como se a vida nessa fase derradeira ainda nos pertencesse e não fosse uma dádiva de Deus.
                O homem, talvez, demore a entender que estamos aqui emprestados e que nossos entes queridos são obras do criador, que os resgata quando estes concluem suas missões.

                A vida, enfim, vai e volta. A vida não passa, simplesmente. Dizia o poeta: “Quem passou pela vida em branca nuvem... (Francisco Otaviano)”

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Família – Os nossos velhos papais noéis



Assoalho de tábuas rachadas na sala e nos quartos; chão de cimento alisado com vermelhão na cozinha; guaranazinho refrescado na bacia e o bom tempero de Luiza no sushi e no lagarto recheado

Walter Ogama

                As últimas peças de roupas precisam só de uma alisada para serem entregues às freguesas. A costureira já pediu a Mary, sua filha mais velha, que ligasse o ferro de passar na tomada perto da mesa de madeira. Daisy, a filha do meio, ainda não terminou os arremates numa saia justa. Denise, a mais nova, acerta manualmente as casas de uma blusa. Só o caçula, Walter, fica fora da linha de produção. Entre ir lá fora brincar e ficar com a família, mesmo sem fazer nada ele prefere entregar-se à manha diante da mãe atarefada.
                Depois de as roupas passadas, dona Luiza vai dobrá-las e aproveitar para fazer uma ligeira revisão. É um controle de qualidade sem metodologia científica, mas muita apurada. Os olhos de quem costura são exigentes e não deixam passar defeito.
                As filhas ajudam no embrulho das peças. “O vestido azul é de fulana. O tubinho laranja é de sicrana. No pacote de beltrana tem que embrulhar junto o tecido que sobrou. Tem pano bastante para fazer uma saia justa de comprimento pouco abaixo dos joelhos”.
                Algumas freguesas virão buscar suas encomendas. Outras pediram para entregar no local de serviço. Dona Luiza tem entre as mulheres que pedem para fazer seus vestidos algumas enfermeiras da Santa Casa de Londrina. O hospital fica na Rua Belo Horizonte.
                Faltam dois dias para o Natal. É bom Daisy se apressar. “Coloque um vestido mais ou menos, apronte o seu irmão, e vá ligeiro até a Santa Casa fazer a entrega destas roupas”. Enquanto isso, Mary e Denise vão ajudar na limpeza da casa.
                Tem linha para todo lado. Elas enroscam na vassoura quando não fogem para o assoalho pelas enormes frestas entre as tábuas que fazem o piso da sala e dos quartos. Uma das frestas, bem perto de onde está a máquina de costura, na sala, acabou virando um cinzeiro. Ali seu Dairoku bate as cinzas do cigarro sem filtro e despacha as bitucas.
                Só amanhã Luiza irá ao Mercado Ribeiro, lá na Rua Araguaia, para comprar o que vai usar no preparo da comida do Natal. Ela vai levar a sacola de lona listrada com alças de arame encapadas com plástico. As garrafinhas de guaraná que estão guardadas num canto da cozinha vão ser levadas vazias e chegarão cheinhas.
                Para as cinco pessoas da casa serão compradas 12 garrafinhas. Metade será consumida no almoço e a outra metade na janta de Natal. Duas garrafinhas serão repartidas. Se estiver barato Luiza vai comprar um garrafão de cinco litros de vinho tinto. Ela e Dairoku tomarão um copo cada, puro. Para as crianças, Luiza vai por uma porção de água muito maior que a própria bebida. O líquido vai ficar com a cor desbotada, mas estará adoçado e terá, de longe, um saborzinho de uva e outro mais forte de álcool.
                Luiza não tem geladeira e nem fogão a gás. A alimentação sairá do enorme fogão de cimento que, de quebra, presenteará a família com o fogo estourando as lenhas, a fumaça pintando a parede de preto e a vontade de Luiza ter dinheiro ano que vem para comprar o seu fogão a gás.
                Para os refrigerantes, a receita dela é puxar a água de poço pouco antes do almoço e encher a bacia de água fresquinha. As garrafinhas ficarão lá dentro, se banhando e perdendo um pouco da quentura.
                Mary, Daisy, Denise e Walter vão querer saborear o guaraná sentindo a pressão do gás e ouvindo o leve zunido que ele faz quando a garrafinha é agitada. Para isso vão furar a tampinha com um prego.
                E há de ser um Natal tão bom de tempero da comida japonesa preparada por Luiza com a ajuda das filhas. Um Natal de muita felicidade tamanha é a humildade e a inocência daquela gente.
Há uma imagem de Buda onde Dairoku faz reverências. Luiza, ali tão perto, reza diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Mary, Daisy, Denise e Walter, pouco pretensiosos, se perguntam: o que virá amanhã.
Aconteceu isso, por mais de uma década e meia, na casinha de madeira velha da Rua Juruá, número 181, na Vila Nova em Londrina. Hoje um vistoso sobrado está naquele lugar. E a Santa Casa mudou para a Rua Senador Souza Naves faz muito tempo.

Mas parece que foi ontem.