sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

HISTÓRIA – Canteiro de obras, escola da vida

Um canteiro de obras é uma escola que ensina: basta aprender o básico para sermos, sempre, serventes em tudo



Osvaldo S. Martins

                O dia mal amanhecera e a roupa de guerra já estava no corpo. Ou melhor, roupa de viagem,
pois a de labuta ficava no canteiro de obras.
                A viagem, diariamente, vencia um percurso razoável de casa até a futura algodoeira. Uma baldeação era necessária para chegar ao destino de todos os dias.
                O velho caldeirão de alumínio, com o almoço carinhosamente preparado todas as madrugadas, fazia de minha mãe uma exímia cozinheira. A tampa precisava ser entrelaçada com um reforçado barbante, para garantir a conservação do tão saboroso almoço.
                Na mochila ia junto a garrafinha de café ou chá, que ficava reservada para a segunda alimentação do dia, que era o café da tarde.
                A viagem era sempre uma aventura, pois além dos costumeiros passageiros que embarcavam para os mais diversos destinos, íamos nós, com outros pedreiros, carpinteiros e serventes. Todo o caminho era de muita conversa sobre os acontecimentos do cotidiano, mesmo quando os assuntos careciam de novidades.
                A lembrança de casa ia aos poucos ficando para trás, pois a correria e a interação com os colegas de trabalho levava nossos pensamentos para o que estaria por vir no canteiro de obras.
                Mas sabíamos que, embora a tarefa a ser cumprida no dia fosse de sol a sol, tudo o que fazíamos era com amor. E o tempo passava sem que percebêssemos.
                Os dias transcorriam árduos sim, E cansativos ao extremo, de segunda a sábado, sem nem considerar as datas marcadas de vermelho no calendário. Pois a jornada não previa feriados.
                Às vezes caia uma chuva leve e insistente. No inverno o frio castigava muito. Mas todos os trabalhadores se sentiam peças importantes. Entre tantos profissionais habilidosos e esforçados, cada um desempenhava a sua tarefa.
                E dava-se um sumiço no cansaço quando, após o almoço, da prosa com os mais velhos vinham histórias de um tempo em que ainda eu nem era nascido.
                Falavam de imigrantes, da derrubada de matas, de vida em um mundo onde tudo era difícil. De novas cidades nascendo e até de guerra, pois um ou outro daqueles que tinham mais idade estivera lá um dia, num campo de batalha de verdade.
                Meu pai administrava a obra. Ele dava duro como qualquer outro e, às vezes, até mais. Era o exemplo da sabedoria, arrastando seus subordinados.
                Eu, que desempenhava a humilde função de servente, fui incumbido de ser o “guarda livros”. Deixei a enxada, a carriola e a picareta de lado por uns momentos e abracei a caneta.
                Naquela função eu fazia o controle das horas trabalhadas e calculava o valor a ser pago a cada um, para providenciar o respectivo recibo de quitação. Sempre com a precaução de rezar na folha do recibo em branco o termo “quitação plena, geral e irrestrita”, para que não houvesse reclamação posterior.
                Assim era feita a folha de pagamento, numa velha banca de montagem de estruturas de ferro. Não havia uma sala com escrivaninha. Todas as tarefas eram exercidas em um ambiente rústico.
                Repetia-se muito naquele tempo que o que era tratado não era caro. Pagava-se o combinado, sem trapaça.
                No enorme canteiro de obras, as paredes iam, aos poucos, avançando. Terminava semana, começava outra e mais outra, e o desenho esboçado no papel começava a tomar forma, sobre um chão duro de terra vermelha.
                A construção brotava de uma fundação que tão penosamente e de forma manual fora executada, para alicerçar com segurança a obra tão esperada. Hoje, o sacrifício manual se resume ao equipamento mecânico e hidráulico, o “bate estaca”, deixando no passado o pesado sentimento de resistência da terra, na perfuração manual dos alicerces.
                Assim o tempo corria e todos corriam contra o tempo, para que a imaginada algodoeira ganhasse a forma de enormes barracões.
                Ao lado, um enorme terreno começava a ser preparado para uma cultura até então desconhecida. Uma nova lavoura, jamais vista na região, que viria ocupar o lugar da velha cultura do café que as geadas haviam sacrificado.
                Tudo ao mesmo tempo, pois estávamos construindo uma máquina de beneficiar algodão e ao lado testemunhávamos o início do cultivo do algodão.
                Enquanto as paredes subiam, os pés de algodão cresciam e ganhavam altura para depois, como se estivesse acenando em sinal de paz, abrir seus frutos, conhecidos de maçãs, em um enorme tapete branco de visão única e maravilhosa.
                Com o avanço da edificação e a cultura em desenvolvimento, outra novidade podia ser vista: aquele velho e sábio senhor, que montava uma arcaica parafernália. Por curiosidade sabíamos que aquilo viria a ser usado para beneficiar o algodão plantado ao lado, separando sua fibra para produtos têxteis e farmacêuticos e a semente para óleo, rações e outras infinidades.
                Tudo era novidade para todos. Por isso os momentos naquela construção foram mágicos. Momentos de aprendizado e descoberta. De conhecer novas pessoas, novas culturas, novas engenharias mecânicas e preencher o tempo e o espaço como poucos puderam fazer.
                E a cada dia, ao encerrar a jornada, a rotina era a mesma. Roupa suja pendurada no quartinho de ferramentas do canteiro de obras e roupas de viagem vestidas por homens cansados.
                Já em casa, o banho rápido alivia o cansaço. A janta é feita às pressas. E outra batalha estava pronta para começar na escola, onde as aulas terminavam às onze da noite e a luta era para vencer o sono. Como estudar e aprender com um corpo cansado e a cabeça pedindo travesseiro para aliviar o peso do dia?
                Pois era assim que se aprendia na escola da vida, onde os canteiros de obras viravam salas de aula a céu aberto.
                Meu pai foi o professor do mais alto grau que um educador poderia ter. Sem a cultura didática, mas com a cultura aprofundada da prática que a tudo se sobrepõe.
                Não me deu diploma, mas transferiu conhecimento, caráter e sabedoria para enfrentar o mundo de cabeça erguida, com ensinamentos tão profundos de quem sabia apenas assinar o próprio nome.
                Foi um tempo de dar saudade. Dos canteiros de obras onde a vida me colocou, das pessoas com quem compartilhei as marmitas, dos profissionais e, sobretudo, do caráter que todos possuíam.
                Quantas lições, que aprendizado. E a vida, enfim, ensinando: não precisamos aprender tudo e sim, o básico, para sermos sempre serventes em tudo, mesmo que cheguemos a ser mestre, algum dia.


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Memória - Um dia de Finados

Artigo escrito por Osvaldo S. Martins, leitor e grande colaborar do administrador do blog, Walter Ogama, com pautas e inclusive apoio em pesquisas na produção de reportagens


Osvaldo S. Martins

                A vida acontece cotidianamente de um jeito tão coordenada que, às vezes, achamos que ela jamais chegará ao fim.
                Mas quando, despreocupados, nos acostumamos com essa possibilidade, eis que o inesperado nos bate à porta. Ou, pode se dizer, o esperado momento se faz presente e a vida é ceifada.
                Morte, passagem ou termos populares, como “bateu as botas” ou “ajuntou os pés”, são algumas das denominações dadas a esse episódio. Evidente, a humanidade e suas diferentes culturas tratam do breve, porém eterno momento da morte, com suas peculiaridades.
                A questão é que tudo o que projetamos quando criança, tudo o que alimentamos na adolescência e fizemos na juventude para alicerçar nossa vida, se acaba em um último suspiro.
                Talvez o derradeiro olhar ao redor seja ainda suficiente para entendermos que o bem material foi superficial à nossa vida. As poupanças que fizemos, por exemplo, em detrimento de conforto não relacionado ao monetário. Uma viagem, uma reunião de família, um livro por mês, um cinema por semana.
                Tanto deixamos para trás com medo de no futuro a vida nos fazer voltar a ser apenas pessoas, sem nada além da própria pele que nos cobre. Bens materiais, enfim, no eterno confronta com os valores humanos.
                Pois assim é vida, feita de variadas etapas e tempo distinto para cada um de nós. De um jeito simples podemos dizer que o destino de todos os mortais é o que acima chamamos de inesperado, embora pontual. Mais cedo para uns, mais tarde para outros.
                E é ali, no cemitério, que nos tornamos raízes do nada. Na quietude, onde o silêncio é a voz que mais se ouve e onde todos permanecem enfileirados, em uma única posição.
                No dia dedicado aos mortos nos embrenhamos a caminhar entre sepulturas. Voltamos ao tempo e imaginamos assistir um melancólico filme sobre o passado.
                Percebemos que a velha mania de criança, de observar os pequenos montes de terra, com uma cruz  fincada e ornamentada com uma coroa de flores de lata, tudo cercado de balaústres, é a lembrança física que resta de um ente que se foi.
                E se o cemitério ficou moderno, com construções em mármore ou granito no lugar onde antes só havia a terra e a cruz,  o mesmo não se diz da morte. Ela permaneceu como era na antiguidade e será assim no futuro, levando a cada instante uma vida. Vida de um segundo, um minuto, uma hora, dias, semanas, anos e vida de uma vida toda.
                Até as letras manualmente escritas nas cruzes de madeira deram lugar a elegantes placas de metal, com frases ou pensamentos cuidadosamente elaborados, ao lado de fotos coloridas. Um olhar e uma lembrança. Uma foto e uma história que ela resgata.
                O que nos mostra que o sentimento de quem fica também é imune à mudança. Ontem e hoje as mensagens gravadas nas lápides são de muita tristeza e saudade. Seria a dor da perda, como se a vida nessa fase derradeira ainda nos pertencesse e não fosse uma dádiva de Deus.
                O homem, talvez, demore a entender que estamos aqui emprestados e que nossos entes queridos são obras do criador, que os resgata quando estes concluem suas missões.

                A vida, enfim, vai e volta. A vida não passa, simplesmente. Dizia o poeta: “Quem passou pela vida em branca nuvem... (Francisco Otaviano)”

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Família – Os nossos velhos papais noéis



Assoalho de tábuas rachadas na sala e nos quartos; chão de cimento alisado com vermelhão na cozinha; guaranazinho refrescado na bacia e o bom tempero de Luiza no sushi e no lagarto recheado

Walter Ogama

                As últimas peças de roupas precisam só de uma alisada para serem entregues às freguesas. A costureira já pediu a Mary, sua filha mais velha, que ligasse o ferro de passar na tomada perto da mesa de madeira. Daisy, a filha do meio, ainda não terminou os arremates numa saia justa. Denise, a mais nova, acerta manualmente as casas de uma blusa. Só o caçula, Walter, fica fora da linha de produção. Entre ir lá fora brincar e ficar com a família, mesmo sem fazer nada ele prefere entregar-se à manha diante da mãe atarefada.
                Depois de as roupas passadas, dona Luiza vai dobrá-las e aproveitar para fazer uma ligeira revisão. É um controle de qualidade sem metodologia científica, mas muita apurada. Os olhos de quem costura são exigentes e não deixam passar defeito.
                As filhas ajudam no embrulho das peças. “O vestido azul é de fulana. O tubinho laranja é de sicrana. No pacote de beltrana tem que embrulhar junto o tecido que sobrou. Tem pano bastante para fazer uma saia justa de comprimento pouco abaixo dos joelhos”.
                Algumas freguesas virão buscar suas encomendas. Outras pediram para entregar no local de serviço. Dona Luiza tem entre as mulheres que pedem para fazer seus vestidos algumas enfermeiras da Santa Casa de Londrina. O hospital fica na Rua Belo Horizonte.
                Faltam dois dias para o Natal. É bom Daisy se apressar. “Coloque um vestido mais ou menos, apronte o seu irmão, e vá ligeiro até a Santa Casa fazer a entrega destas roupas”. Enquanto isso, Mary e Denise vão ajudar na limpeza da casa.
                Tem linha para todo lado. Elas enroscam na vassoura quando não fogem para o assoalho pelas enormes frestas entre as tábuas que fazem o piso da sala e dos quartos. Uma das frestas, bem perto de onde está a máquina de costura, na sala, acabou virando um cinzeiro. Ali seu Dairoku bate as cinzas do cigarro sem filtro e despacha as bitucas.
                Só amanhã Luiza irá ao Mercado Ribeiro, lá na Rua Araguaia, para comprar o que vai usar no preparo da comida do Natal. Ela vai levar a sacola de lona listrada com alças de arame encapadas com plástico. As garrafinhas de guaraná que estão guardadas num canto da cozinha vão ser levadas vazias e chegarão cheinhas.
                Para as cinco pessoas da casa serão compradas 12 garrafinhas. Metade será consumida no almoço e a outra metade na janta de Natal. Duas garrafinhas serão repartidas. Se estiver barato Luiza vai comprar um garrafão de cinco litros de vinho tinto. Ela e Dairoku tomarão um copo cada, puro. Para as crianças, Luiza vai por uma porção de água muito maior que a própria bebida. O líquido vai ficar com a cor desbotada, mas estará adoçado e terá, de longe, um saborzinho de uva e outro mais forte de álcool.
                Luiza não tem geladeira e nem fogão a gás. A alimentação sairá do enorme fogão de cimento que, de quebra, presenteará a família com o fogo estourando as lenhas, a fumaça pintando a parede de preto e a vontade de Luiza ter dinheiro ano que vem para comprar o seu fogão a gás.
                Para os refrigerantes, a receita dela é puxar a água de poço pouco antes do almoço e encher a bacia de água fresquinha. As garrafinhas ficarão lá dentro, se banhando e perdendo um pouco da quentura.
                Mary, Daisy, Denise e Walter vão querer saborear o guaraná sentindo a pressão do gás e ouvindo o leve zunido que ele faz quando a garrafinha é agitada. Para isso vão furar a tampinha com um prego.
                E há de ser um Natal tão bom de tempero da comida japonesa preparada por Luiza com a ajuda das filhas. Um Natal de muita felicidade tamanha é a humildade e a inocência daquela gente.
Há uma imagem de Buda onde Dairoku faz reverências. Luiza, ali tão perto, reza diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Mary, Daisy, Denise e Walter, pouco pretensiosos, se perguntam: o que virá amanhã.
Aconteceu isso, por mais de uma década e meia, na casinha de madeira velha da Rua Juruá, número 181, na Vila Nova em Londrina. Hoje um vistoso sobrado está naquele lugar. E a Santa Casa mudou para a Rua Senador Souza Naves faz muito tempo.

Mas parece que foi ontem.



sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Família – Uma conversa, um cinema, um compromisso



 

Christian Paul e Idelines comemoram neste outubro onze anos juntos; tudo começou no Dia da Padroeira

Walter Ogama

O acaso é, às vezes, manhoso. Outras vezes ele se faz estrategista. Ou, as duas coisas.
Assim deve ter sido naquelas primeiras semanas de aulas do ano letivo de 2005. Christian Paul fazia o último ano de Biblioteconomia na Universidade Estadual de Londrina e Idelines era caloura do mesmo curso.
Certa ocasião, no ponto de ônibus, eles iniciaram conversa. Só a chegada do coletivo obrigou ambos a encerraram o diálogo.
                Mas aquele primeiro contato foi marcante para ambos. Porque tempos depois houve convite, de uma das partes, para irem juntos ao cinema. O filme escolhido foi um nacional: "Dois Filhos de Francisco", baseado na vida dos músicos da dupla Zezé Di Camargo e Luciano.
                Pois não só a trama mostrada na telona, mas principalmente as flechas de um bom sentimento que cruzavam o espaço entre um e outro, para ter como alvo os respectivos corações, fizeram com que Paul e Idelines iniciassem namoro no Dia de Nossa Senhora de Aparecida, 12 de outubro. Neste ano de 2016 a relação completou 11 anos. Paul e Idelines são devotos da Santa.
Idelines trabalha na área de beleza. Estava feliz com o namoro. Certa vez Idelines recebeu a amiga e cliente Márcia Moreno e contou a ela a boa novidade. Complementou mostrando a Márcia a foto de Paul.
Aquilo aumentou a euforia de Márcia, pois ela reconheceu o moço da foto como o vizinho de tempos atrás. Paul morou na casa ao lado da dos pais de Márcia, dona Amélia e seu Miguel, da infância até a juventude. E Márcia disse a Idelines que tinha muito carinho por ele.
Paul viveu do nascimento até os seis ou sete anos numa casa da Travessa Paraguaçu, localizada entre a Rua Bahia e a Rua São Vicente, onde recebia os cuidados da avó, Luiza Ogama, e do avô, Dairoku Ogama.
Depois a família mudou-se para a Rua Icós, na Vila Portuguesa. Ali morava Márcia, com os pais Amélia e Miguel, as irmãs e anos depois um irmãozinho, o Miguel Fernando.
Parte do bairro era remanescente de um assentamento e outras localidades próximas ainda tinham resquícios de ocupações. Além da família de Márcia, também o casal Julieta e Mário, que havia sido vizinho na Travessa Paraguaçu, acolheram com carinho os novos moradores.
Na Icós Paul iniciou os estudos, acompanhou a avó às compras do supermercado, da feira livre e dos bazares do centro da cidade. Dentre os acontecimentos tristes que a vida fatalmente apresenta, Paul acompanhou o falecimento do avô e posteriormente o da avó.
Já trabalhava como funcionário público municipal, mas aproveitou a onda dos dekasseguis, quando grande número de descendentes de nipônicos viajou a trabalho ao Japão. Paul foi com os primos Rosemary e Roberson.
Quando retornou, anos depois, uma das atividades profissionais que exerceu por longo período foi em escritório de contabilidade.
Paul é filho de Daisy. No retorno ao Brasil ele conheceu o pai biológico, José Santana. Por parte do pai Paul tem três irmãos: Beto, Agda e Guilherme. Por parte da mãe são dois irmãos, Edson e Matheus. Quanto aos sobrinhos, são três do lado paterno e uma do lado materno.
Paul é formado em Biblioteconomia na Universidade Estadual de Londrina e lembra que o grande desejo da avó Luiza, que o criou, era que ele chegasse ao ensino superior e conseguisse o diploma.

                Do relacionamento com Idelines surgiu também o carinho de Paul para com a mãe dela, dona Geni, e a avó dela, dona Gumercinda.



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Família – Entre Neca e Mari, a Nana


Irmã do meio, Daisy certa vez seguiu o roteiro dos dekasseguis que partiram para o Japão na esperança de um retorno ao Brasil mais justo financeiramente

Walter Ogama

O encontro das ruas Javari e Turiaçu, na Vila Nova, em Londrina, era um bom atalho a quem subia para os fundos da rua de cima, a Juruá. Aquela esquina encerrava uma área gramada antes pertencente a um campo de futebol, o União, que já recebia naqueles tempos algumas casas.
Porém, a travessia por ali, fazendo uma diagonal, pedia a transposição de barrancos. Nada exagerados na altura, mas inconvenientes nos dias de chuva. Em situações normais, o local dispunha de uma escada de terra formada naturalmente de tanto sobe e desce das pessoas. A poeira misturada com grama virava um transtorno para os calçados brilhantes da graxa.
Daquela direção subiam, fazendo a diagonal pelo trilho marcado na vegetação rasteira, a Nana e sua colega de escola, Rosa Maria. Nana morava no número 181 da Juruá. Era a terceira casa do segundo quarteirão. A Juruá ia da Rua Araguaia até a Rua Tietê, cortadas pela Turiaçu e pela Solimões.
Rosa Maria morava no mesmo quarteirão de Nana, quase no fim dele. Mas a colega fazia a mesma diagonal para que pudessem parar na frente do portão de Nana para encerrar as conversas.
Nana, batizada Daisy Mitsue Ogama, é filha de Luiza e Dairoku Ogama. Tem duas irmãs, a Denise, que é mais nova, e a Mary, que é mais velha. O quarto filho de Luiza e Dairoku é homem. Uma quinta criança, Karen, faleceu ainda pequena. Daisy nasceu no dia 30 de setembro de 1953.
Rosa Maria, ao contrário, tinha três irmãos homens e era a única mulher da casa. O pai mantinha uma fábrica de balas na Juruá.
Nana é casada com Dirceu e com ele teve dois filhos, Edson Kazuo, que nasceu em 20 de julho de 1973, e Matheus Koiti, nascido no dia 16 de setembro de 1994.
Edson é solteiro e depende de cuidados especiais, por isso ainda mora com a mãe e o pai. Nana dispensa toda a atenção ao filho.
Matheus, o mais novo, cresceu tendo a família e a religião como bases sólidas para a sua formação. Casado com Aline Karen, Matheus trabalha em laboratório ótica, segmento no qual se especializou. O casal tem uma filha, Sofiah Keiko, que nasceu no dia 24 de agosto de 2016.
Nana, quando adolescente e depois jovem, tinha estatura física menor que o da irmã mais velha, Mary. Em relação a Denise, a irmã mais nova, Nana, embora magra, tinha altura bastante superior.
A subida diagonal do barranco da rua de baixo até a Juruá na direção da casa número 181, trazia uma jovem de cabelos negros, meias brancas até a metade das canelas, blusa branca de botões de camisa, saia de tergal azul marinho plissada e sapatos sociais pretos.
Era o uniforme do Colégio Estadual Professor Vicente Rijo, que na época funcionava no quarteirão cercado na frente pela Rua São Salvador, de um lado pela rua São Vicente, aos fundos pela Rua Belém e no outro lado pela Rua Niterói.
Hoje o Vicente Rijo funciona nas esquinas da Avenida Higienópolis com a Avenida JK. As antigas instalações abrigam atualmente o Colégio Estadual Marcelino Champagnat.
Nana também estudou o primário no Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Rua Araguaia. E atravessou o antigo campo do União e a metade do campo de beisebol do Nihon-Gaco para as aulas de japonês.
Em dezembro de 2004 engrossou a fila dos dekasseguis que foram trabalhar no Japão, como chão de fábrica, na esperança de retornar ao Brasil com capital suficiente para dar uma guinada econômica na vida.
Naquele tempo, o trabalho no Brasil, assim como é agora e já se repetiu por vezes, garantia muito pouco aos brasileiros. Por isso, houve anos em que os descendentes de japoneses partiram para o Japão. Houve também trabalhadores brasileiros que foram aos Estados Unidos e alguns países da Europa.
Mas Nana ficou pouco tempo no Japão. Em setembro de 2005 ela retornou porque havia deixado os filhos no Brasil. Apesar disso, diz que a experiência foi boa e não teria voltado se não fosse pelos filhos.
Antes de ir ao Japão Nana trabalhou em bazar no centro de Londrina, em escritório de contabilidade, em fábrica de doce, em estabelecimento particular de ensino e em instituição hospitalar, entre outros.

Atualmente cuida do filho mais velho, Edson, e paparica a neta Sofiah, o filho Matheus e a nora Aline. Regularmente Daisy se encontra com as irmãs Denise e Mary. 


domingo, 16 de outubro de 2016

Família - Cedo Mari teve que deixar o lar para trabalhar



Emprego em casa de parente longe do bairro onde a família morava permitia a ela voltar para casa só nos finais de semana

Walter Ogama

                Tempo de expectativas. A gente ficava pensando nos fins de semana com chuva e se perguntava: “Como é que Mari vai chegar até aqui?”
                É que o aqui contido na pergunta era a rua sem asfalto. Se vinha a precipitação de um jeito mais forte e demorado em pouco tempo os sucos deixados pelos pneus dos carros no meio daquela via ficavam cobertos pela lama.
                As enxurradas desciam pelas laterais. A vila que não tinha asfalto naquela região também não dava aos seus moradores o conforto da água encanada e da rede coletora de esgoto. Toda a água, suja, remediada ou limpa, descia junto com a enxurrada.
                Mari trabalhava na casa de uma tia, no centro de Londrina. Nós morávamos na Rua Juruá, casinha de madeira envelhecida de número 181, na Vila Nova, em Londrina. Mari trabalhava muito e só voltava para casa nos finais de semana.
                Eu já havia convencionado que entre o meio e o fim da tarde ela chegaria. Mas quando chovia a apreensão tomava conta. Mari, filha mais velha de Luiza e Dairoku Ogama e irmã de Nana, Neca e Riu, havia trabalhado perto de casa, inclusive numa fábrica de doces da rua abaixo, a Javari.
                Era a primeira vez que alguém da família ficava tanto tempo fora. Além da saudade, a gente queria ouvir as novidades que ela trazia. Não tínhamos televisão em casa e Mari podia assistir novelas e programas de variedades no emprego. Em casa, nos fins de semana, havia sempre um momento em que esperávamos que ela contasse para nós episódios daquilo que assistia.
                Também não tínhamos geladeira e nem fogão a gás em casa. A primeira geladeira que mamãe conseguiu colocar na nossa cozinha foi uma usada, que ganhou justamente da irmã que havia empregado Mari. Chamávamos ela de Tia Iokie. O primeiro aparelho de televisão que mamãe teve para assistir as novelas também foi presente dela.
                Eu lembro que esperava Mari descer a Rua Juruá, vindo da Araguaia, sempre trazendo sacolas de roupas que levava para o serviço. Em dias de sol e poeira a espera por Mari era na escada da frente da nossa casa. Uma escada de madeira, com cinco degraus, que mamãe e minhas irmãs lavavam nos sábados e a madeira ficava branquinha.
                Nos dias de chuva e lama eu lembro de esperar Mari na Janela da frente da casa. Era uma janela de taramelas com fortes dobradiças num lado e, no outro, a taramela cujo buraco do prego estava tão dilatado que rodava e abria com o bater do vento.
                A casa era alugada e não tinha varanda. Igual à casa do vizinho tintureiro do lado direito. Diferente da casa da vizinha Maria do lado esquerdo, que tinha varanda na frente e nos fundos. A gente não sabia se era inveja, mas dava vontade de morar numa casa igual da dona Maria. As tábuas, ali, eram de cor claras, por serem ainda novas. Nossas tábuas pareciam enferrujadas, de tão velhas.
                Mari, batizada Mary Mitsuko Ogama, estudou na escola japonesa localizada na confluência das ruas Tietê com Javari e depois fez o curso primário no Grupo Escolar Nilo Peçanha. No nosso tempo todos tinham que fazer exame de admissão para entrar no curso ginasial.
                Mari, antes de trabalhar com a tia, não perdia as quermesses da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, na Vila Nova, hoje com estatus de Santuário e visitado por pessoas de toda a região no dia 12 de outubro, data consagrada à Padroeira do Brasil.
                Era o tempo das músicas de Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Martinha, Wanderléia, Renato e Seus Blue Caps, Golden Boys, Elvis Plesley e outros saudosos artistas da canção. Às vezes recebíamos na nossa modesta casa, que depois nós mesmos batizamos de casinha do morro porque ficava no alto, sobre toras cortadas a escorar a construção, algumas amigas da Mari. Com o tempo elas viravam amigas das três irmãs, da mamãe e até do papai. Eu ainda era um mascote.
Mari e minhas outras duas irmãs crescemos numa casa precária. Naquele tempo não havia banheiro dentro ou encostado nas casas antigas. A nossa privada ficava no fundo do quintal e não tinha onde tomar banho. Fazíamos isso num reservado dentro de casa, onde o chão era de cimento alisado com vermelhão.
A porta da cozinha tinha frestas enormes e tábuas apodrecidas na parte debaixo. E a gente sentia medo dos ratos, das cobras cegas e até de pessoas que tinham como colocar os braços até metade pelas frestas.
Na falta de geladeira mamãe comprava no Natal e no dia de Ano uma dúzia de guaranazinho. Dava um para cada membro da família no almoço e repeteco na janta. Para esfriar um pouco o refrigerante mamãe colocava as garrafinhas numa bacia com água do poço.
Já o fogão a lenha, feito de cimento, ajudava muito no frio e depois das chuvas para secar os sapatos, que ficavam encostados na lateral do apoio onde eram colocadas as lenhas.
Antes de trabalhar fora Mari também ajudou em casa na catação de café. As máquinas compravam o produto e beneficiavam. Antes de ir à torra ensacavam os grãos que eram levados por carroceiros aos bairros. Famílias que aceitavam o serviço de catar café estragado recebiam por saca limpada e tinham um extra para as despesas.
Mari nasceu no dia 29 de julho de 1952. Casou com Batista Bidoia, nascido também em julho, no dia 21 do ano de 1951. Eles tiveram quatro filhos: Roberson Alexandre Bidoia, que nasceu em 21 de agosto de 1979; Rosemary Bidoia, nascida em 6 de setembro de 1978; Roberto Bidoia, nascido em 30 de maio de 1988, e Reinaldo Rodrigo Bidoia, que nasceu em 11 de março de 1993.
Roberson e Rosemary estão no Japão. Ela tem um filho, o Lucas Martins, que nasceu no dia 24 de setembro de 2000. Roberson ê casado com Márcia Tae Terashima, nascida em 10 de dezembro de 1978. Eles são país de Alexia Akemi, que nasceu em 11 de abril de 1999; Ellen Sayuri, nascida em 16 de dezembro de 2002; Aeros Hiro, nascido em 2 de agosto de 2009, e Karina, que nasceu em 12 de novembro de 2012.
Roberto e Reinaldo estão no Brasil com Mari. Ambos trabalharam com pai até o falecimento dele, em 1º de julho de 2000. Depois, entre os empregos a que se dedicam, o de maior tempo é em pequena indústria instalada onde funcionou a tapeçaria do pai.
Roberto está namorando Jeisi  Câmara. Reinaldo está firme e feliz com Fernanda   Souza Gouveia, que é mãe de Ana Gabriela.

Roberson e Rosemary estão há 12 anos no Japão. "A Rose está na fábrica há 11 anos e no ano passado foi homenageada pelos 10 anos na empresa", conta Mari. "O Roberson tirou carteira para dirigir caminhão, depois pediram para tirar carteira para dirigir carreta e deu tudo certo. Ele trabalha transportando peças de uma fábrica para outra e conseguiu comprar sua casa financiada, que é melhor que aluguel", acrescenta a mãe coruja.



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Família – Neca, a caçula das meninas




A pronúncia é meio japonesa e carece de acento agudo na imaginação de quem chama Denise pelo apelido

Walter Ogama

                Neca, dito como se houvesse um acento agudo na primeira vogal, era miudinha na altura e na largura. Magérrima e de pele escura, de longe não diriam que Neca tinha descendência nipônica. Mas, na atenciosa observação, os cabelos lisos e negros denunciavam a origem.
                Batizada Denise Setsuko Ogama, Neca é filha de Luiza e Dairoku Ogama. A mãe nasceu em Morretes e o pai veio do Japão. Denise nasceu em Curitiba no dia 2 de outubro de 1954. É a mais nova de três irmãs. Mary e Daisy são as mais velhas. Depois de Denise nasceu o Walter, único filho homem de Luiza e Dairoku.
                Em Londrina, um dos locais onde a família morou por anos é a Vila Nova. A casinha de número 181 na Rua Juruá, uma das transversais ligando a Rua Araguaia à Rua Tietê, foi endereço daquela gente por muito tempo, desde após o nascimento de Walter em 1956, nos fundos de um bar da Rua Mossoró, no centro da cidade.
                A Araguaia era a única rua próxima calçada com paralelepípedos. Descendo quarteirões adiante por ela chegava-se a Rua Guaporé, também calçada. A Tietê, de chão batido, era conhecida como “bananal”, pois em suas margens se avizinhavam chacareiros. Os pais amedrontavam os filhos. Diziam que na Tietê passava o homem do saco que levava as crianças embora.
                Era, porém, bem na esquina da Tietê com a Javari que ficava a escola japonesa, onde Walter, Denise, Daisy e Mary estudaram antes de serem matriculados no antigo curso primário, no Grupo Escola Nilo Peçanha, localizado na Rua Araguaia.
                Com barro ou poeira, os pequenos tinham que esquecer do homem do saco e ir à escola. Do número 181 da Rua Juruá até a esquina da Tietê com a Javari demorava para chegar. O tempo gasto era apenas a travessia diagonal de um campo de futebol, o União, e de um meio campo de futebol onde os descendentes de japoneses treinavam beisebol.
                Do 181 até o Grupo Escolar Nilo Peçanha o percurso era um pouco maior, mas parecia menos, principalmente nos dias de chuva, por causa dos paralelepípedos que permitiam durante a caminhada arrastar os sapatos nas pedras para eliminar o barro.
                Um dos primeiros empregos de Denise foi na fábrica de doces e de amendoim salgado do Senhor Iwamoto, na Rua Javari, onde também trabalhou por anos a irmão mais velha, Mary. Naquele tempo o apelido era o mais usual. Neca, portanto, ainda se lembra da massinha de pão que a Dona Lúcia, mulher do Senhor Iwamoto, preparava e repartia com os empregados na hora do café.
                Neca estudou o ginásio no Colégio Estadual Vicente Rijo, com entrada principal na Rua São Salvador, depois da Guaporé. Posteriormente o Vicente Rijo foi transferido para a esquina da JK com a Higienópolis e a velha instalação abriga até hoje o Colégio Estadual Marcelino Champagnat.
                Neca passou por muitos empregos, alguns depois de casada e já com filhos. Dentre eles a Relojoaria Galo de Ouro, que funcionava na Rua Sergipe; a Relojoaria Vila Rica, na Galeria da Folha de Londrina; o Royal Perfumes, na Rua Sergipe; a bilheteria do Cine Contour; o Sacola Cheia, na Rua Araguaia, e a Mercearia Shiroma, no Mercado Shangri-la.
                Casada com João Roberto Bitencourt, Denise teve com ele dois filhos. Johnny George nasceu em 8 de dezembro de 1975. Michael Robert nasceu em 22 de agosto de 1977 e faleceu em 12 de dezembro de 2002. O pai, João Roberto, também faleceu. Anos depois Denise se uniu a Valdir, de quem recebeu apoio para cuidar dos filhos.
                Johnny George está no Japão desde 1996. Casado com Marites, que faz aniversário em 16 de dezembro, é pai de Ichika, que nasceu em 3 de janeiro de 2013.
                Neca inclui ainda como pessoas importantes em sua vida a neta Sayuri, que nasceu em 3 de março de 2001 e mora em Goiania. Vovó Ziza, que faleceu recentemente, também teve forte ligação com a família de Neca. O sobrinho Christian Paul, que vive hoje com Idelines, morou vários anos com dona Luiza e merece carinho como um irmão.
                Denise se reúne frequentemente com as irmãs e os sobrinhos. Embora o filho, a nora e as netas estejam longe, ela tem muita estima por animais domésticos. Cães e gatos costumam encontrar abrigo na casa dela.
                E eu ainda me lembro que minhas irmãs iam à quermesse da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, da Vila Nova, nas noites de sábado. Eu, moleque, ainda ficava em casa com mamãe, na máquina de costura, e papai no conserto de aparelhos de rádio.

                Mais um pouco dos nosso apelidos: eu era o Riu, que vinha do abreviado do meu nome japonês, Rhiuzo; Mary, a nossa irmã mais velha, era Mari, também forçando um acento agudo no final. E chamavam a Dasy de Nana, também com pronuncia japonesada, anasalando no primeiro “na” como se houvesse um til.  


      

sábado, 8 de outubro de 2016

Crônica - Entre pedras soltas, buracos, bicadas de pombos, gordura, cheiro de fritura e descaso


Walter Ogama

                Pombas! Essas avezinhas são de encher a moleira. Ainda mais bicando, sob o sol torturante deste início de primavera.
                E eu, entregue ao comodismo, nada faço para te aliviar. Se bem que, na presente conjuntura, o senhor não passa de um busto.
                Diferente da estátua viva que lá adiante, no quarteirão anterior, aproveita o pouco caso dos passantes e pisca, disfarçadamente, os olhos que ardem e lacrimejam. O senhor é apenas uma pedra artisticamente trabalhada. Nem respira e nem torce o nariz.
                O que faria a estatua viva lacrimejar e piscar? A poluição do ambiente pouco ou nada zelado? Ou a cestinha vazia, sem qualquer moeda para agradecer com um trocadinho o artista que atravessa minutos imóvel, distante dos que o rodeiam, mas perto de si mesmo?
                Sim, perto de si mesmo. Só assim ele consegue desempenhar o seu papel e chamar não só a atenção de alguns. Quem sabe, junto, um sentimento de misericórdia pelo artista ter inclusive transmitido que faz aquilo para sobreviver.
                Diferente do busto fincado naquela praça bem no centro de Londrina. A estátua de pedra tem em sua placa a informação, a data e o motivo daquele homem, petrificado, estar naquele lugar.
                Trata-se de Willie da Fonseca Brabazon Davids, considerado um grande benfeitor da cidade e da região. É, portanto, uma homenagem. E a data da instalação é 22 de maio de 1952.
                É famoso este cara, pois está também em nome de escola, de estádio de futebol e de via pública. Verdade, em Rolândia, cidade da Região Metropolitana de Londrina, existe a Rua Willie Davids.
                Ele nasceu em Campinas, no Estado de São Paulo, em 29 de novembro de 1893. Foi prefeito de Jacarezinho e depois deputado estadual. Posteriormente, em Londrina, assumiu uma das diretorias da Companhia de Terras Norte do Paraná e foi prefeito da cidade, onde construiu escolas, abriu ruas e trouxe muitas outras melhorias.
                Também para a região, chegou a estender sua vocação construtivista até Apucarana. Seu nome consta ainda entre os que, durante o surto da febre amarela, fundaram uma sociedade beneficente, posteriormente denominada Irmandade da Santa Casa de Londrina.
                Willie Davids e a esposa Carlota tiveram dois filhos, Willie e Nellie. Como obreiro, mereceu justa homenagem do pessoal daqueles anos de 1950.
                Agora, a estátua finca-se solitária no meio de uma praça pública pouco ou nada conservada. Lá embaixo funciona a feira do artesanato. Há barracas de panos de prato e outras manufaturas à venda nas redondezas.
                A obra do cine teatro, tida por alguns como a salvação da pátria, está atrás do tapume. Carrinhos de lanches espirram gordura e cheiro forte que atraem insetos. Pombos, inclusive aquele que bicou a cabeça do benfeitor insistentemente, mancham a região.
                A cidade está suja. Não há como deixar para a posteridade bustos de prefeitos de agora, vereadores, deputados estaduais e federais, senadores ou qualquer coisa parecida.
                Nem nós, eleitores de uma importante, porém desrespeitada democracia, merecemos menções que poderiamos tê-las se soubéssemos dignificar o nosso direito de votar. Mas, parece, ainda votamos para não perder o voto ou acreditamos nos falsos analistas ouvidos e retransmitidos pela mídia.

                Assim sendo: Bom Dia Garotas e Garotos de Recado! 


    

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Crônica - A Velha Rota

Rua Juruá, Vila Nova, Londrina: o ponto de saída
Rua Araguaia, já na era do asfalto
Antes mercearia, o comércio ficava no meio do percurso
Walter Ogama

                Tantos retornos couberam nesse rumo. Sempre de dia, mas na rotação relâmpago do mundo, inexplicavelmente trazendo a quietude opaca da noite de repente. Da luz para o escuro, de um instante a outro.
Sonho. É para o Norte, onde o sol passa ao meio-dia, que se vai. Outra vez, num carro que não sai do lugar, nas passadas encolhidas do medo de ir, no pedal emperrado da bicicleta, ou na velha moto descendo enguiçada e sem ronco a rua que leva à linha de trem.
Sim, é sonho. Recorrente, teimoso, cansativo, quase pesadelo. Para que lado o inconsciente quer me levar? Sei, por enquanto, que é a um lugar onde nunca ousei voltar. Talvez por isso o breu da noite, quando a luminosidade matutina ou vespertina animava.
Nunca o sono desequilibrado me fez andar o caminho de ida, aquele, da infância inocente. A mãe puxando pela mão e as irmãs atrás, de vestidos simples e calçados velhos, porém conservados, enquanto o pai, mais adiante, arrumava a camisa para dentro das calças.
Subíamos, em cinco, a pequena distância da Rua Juruá, na Vila Nova, em Londrina, saindo do número cento e oitenta e um. A primeira esquina a transpor era a da Turiaçu. Ela chegava rápido, menos de meio quarteirão.
A via sem asfalto, com as duas marcas das rodas levando para frente em paralelas, daquele ponto mostrava a Araguaia, calçada com paralelepípedos, por ser a mais importante do lugar.
A referência para sair dela, poucos passos adiante, era a mercearia, na esquina da Cabo Verde, conhecida como “dois irmãos”. Não era o nome do estabelecimento, mas o apelido familiar mais aceito pelos fregueses.
A subida seguinte era cansativa. Três ou quatro quarteirões acima para chegar a linha do trem. Transpô-la era a brincadeira das crianças e a ousadia dos adultos, principalmente nos dias de chuva.
Antes a faixa de mata rasteira, com alguns pés de mamona carregados de munição para os estilingues, além do capim alto sujando as pernas. Depois de vencido os trilhos o elevado barranco de terra, com degraus feitos de enxada, para facilitar quem ia ou vinha.
Na poeira o desacerto era nos sapatos, cheios de pó. Na lama o problema era o barro, quando não vinha o pior: uma queda na subida ou na descida bem ali na escada do barranco e a roupa manchada pela terra vermelha.
Hoje, num único ponto antes de onde se ergue o prédio do consórcio intermunicipal de saúde - antes Samdu e depois pronto-socorro do então Inamps -, onde mamãe me levou no colo certa vez para costurar corte profundo na coxa com lata velha, construíram uma escada de cimento que leva da avenida que tomou o lugar da linha até uma rua sem saída e sem nome.
Mas naquele tempo, após a travessia dos trilhos e do barranco, andava-se vinte passos miúdos até o asfalto, lá em cima. A pavimentação já cobria a Travessa Goiânia, com apenas um quarteirão longo, via que terminava, para quem ia ao centro, na subida curta da Rua Amapá, até a esquina com a Belo Horizonte.
Ali já se via os prédios. Para as crianças aquilo já era a cidade, apesar de ainda faltar um trecho curto até chegar ao ponto onde uma pracinha, ladeada pela própria Belo Horizonte na frente, mostrava no outro lado os paralelepípedos da Rua Quintino Bocaiúva e se fechava com a Rua Mossoró fazendo um triângulo.
Pertinho ficava a quitanda de vovó e do vovô, bem na Belo Horizonte, entre a Fernando de Noronha e a Benjamin Constant. Com uma porta, já de fora mostrava a quem passava a maçã argentina, o abacaxi, a banana, as uvas, as verduras e as folhas. Havia uma espécie de galeria que permitia ao pedestre atravessar para a Quintino Bocaiúva, de onde se ia para a antiga Avenida Paraná, após atravessar a Benjamin Constant e a Rua Sergipe.
Estávamos, então, no centro de Londrina. Todos os anos, nos desfiles de Sete de Setembro e de Carnaval. Já nos finados seguíamos mais adiante, a pé, mamãe, papai, eu e minhas três irmãs, Mary, Daisy e Denise, até o Cemitério São Pedro, onde num túmulo coletivo jazia nossa irmãzinha mais nova e num túmulo com capela os parentes já falecidos descansavam.
Na volta, ganhávamos pipoca. Ou, nas idas ao centro durante os dias da semana para as compras de fim de ano, éramos agraciados pelos pais com pasteis de carne também no caminho de volta.
Mas é a partir da Belo Horizonte que o meu sonho, insistente, termina quando chego na mata após a travessia da linha férrea.  E evita que eu volte para a Rua Juruá, onde a velha casa de madeira me abrigou até o fim da adolescência.
Seria por causa das janelas e portas de taramelas que abriam ao bater do vento? Ou as frestas enormes entre as tábuas, no assoalho?
Quem sabe a inocência que me permitiu, na pobreza, uma vida de brincadeiras no barro, na poeira e nos quintais com manga, limão, cana-de-açúcar, abacate e maracujá-doce estejam pesando no meu ócio.

Porque agora, anos passados num mundo competitivo já ao cruzar da porta para sair de casa, eu tenho certo medo de ir ou voltar de qualquer lugar para outro.


Leste-Oeste antes linha do trem
Escada sem destino
A pracinha no triângulo da Belo Horizonte, Quintino
Bocaiúva e Mossoró


segunda-feira, 5 de setembro de 2016

REPORTAGEM - Ele faz a cabeça dos outros

Francisco  Carlos Ramos, o Carlinhos, chegou da roça, virou engraxate e decidiu, no supetão, seguir o ofício de barbeiro

Francisco Carlos Ramos, o Carlinhos, desde
1978 na profissão e há 27 anos no salão
do Centro Comercial, na Rua Piauí
O estabelecimento já acolheu
profissionais tradicionais e serviu também
para o início de outros;
Rodrigo está no ofício há três anos e meio

Walter Ogama

                Como um traçado desenhado a caneta, sem rascunho, tamanha era a certeza. Assim o adolescente Francisco Carlos Ramos emoldurou seu projeto de vida.
Ele havia trabalhado na roça dos nove aos 15 anos para ajudar os pais, que moravam em propriedade rural lá pelas bandas adiante de onde hoje existe o Conjunto Cafezal, na Zona Sul de Londrina.
Só depois mudou para a cidade, onde se tornou engraxate. Sorte que Francisco tinha um lugar fixo para trabalhar. Ele fazia os pares de sapatos brilharem lá no Salão Elite, instalado na Avenida São Paulo.
Com sete profissionais de barba, cabelo e bigode, o Salão Elite repartia com o Salão Presidente, também instalado na área central da cidade, a preferência dos homens londrinenses.
Naquele tempo o público masculino ia à barbearia só para cortar os cabelos e aparar a barba e o bigode, quando tinham. Ninguém imaginava um marmanjo de voz grossa fazendo as unhas das mãos ou dos pés num salão de clientela mista igual aos de agora.
Por isso, quando o marido saia de casa para acertar a aparência, avisava para a mulher que ia à barbearia. Elas, antigamente, iam aos sábados nos salões frequentados só por mulheres para ajeitar as madeixas, passar esmalte nas unhas, afinar as sobrancelhas e caprichar nos produtos para rejuvenescer a pele do rosto.
Enquanto isso, lá no Salão Elite, Carlinhos, entre o pano e a escova passados num sapato de couro, observava e admirava os barbeiros fazendo a cabeça dos homens .
Eles normalmente chegavam com os “paralamas” das orelhas cobertos de cabelos, os pelos do bigode roçando os lábios e invadindo a boca, além da barba, de tão espessa e longa, mais “enfeiando” do que criando um estilo na cara do sujeito.
Meia hora depois ou pouco mais, saiam de cabeça feita e cara limpa graças ao trabalho dos profissionais da tesoura, do pente e da navalha.
Então Carlinhos decidiu ser um deles. De engraxate, trabalho que executou dos 15 aos 18 anos, Carlinhos se tornaria barbeiro.
O ofício ele aprendeu no próprio Salão Elite, por conta, olhando os profissionais trabalharem e recebendo dicas. Por isso se disse lá atrás que “por sorte” o adolescente havia acertado no lugar de engraxar sapatos. O Elite mostrou para Carlinhos o futuro e a possibilidade de formação profissional.
Após a aprendizagem Carlinhos frequentou curso de aperfeiçoamento. Com mais experiência foi trabalhar no salão da Rua Piauí, na galeria do Edifício Centro Comercial, onde está há 27 anos.
Ali ele já trabalhou com os profissionais Carioca, Luiz, Baiano e o Chiquinho, que já faleceu, entre outros. Atualmente reparte o salão com Rodrigo, que está na profissão há três anos e meio.
Carlinhos nasceu no dia 24 de outubro de 1957, em Londrina. Está casado com Jandira há 34 anos. Tem dois filhos, Francarli, de 31 anos, e Renan, de 26. Francarli seguiu a profissão do pai e chegou a trabalhar certo período no salão da Rua Piauí. Atualmente está em Portugal, onde exerce a atividade.
Carlinhos é de opinião que salão de barba, cabelo e bigode tem que ser um lugar limpo e acolhedor, mas sem exageros na decoração e no jeito de tratar os fregueses. Na verdade, a chamada barbearia só tem freguês homem, diferente dos atuais conceitos de salão que misturam homens e mulheres e ampliam a oferta de serviços oferecidos.

Pois no salão da Piauí quem entra para acertar as aparências ainda prefere o jeito antigo de deixar os cabelos na medida e a cara limpa.   

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Crônica - A nossa primeira televisão

Eu bem me lembro! Passava a série O Fugitivo e a gente pegava os cacos das cenas por entre as balaústres de madeira da cerca da casa de Ivone, colega do Grupo Escolar Nilo Peçanha.
A família dela era uma das poucas a ter carro naqueles imediações da Vila Nova, em Londrina. A casa ficava na Rua Javari, em frente ao campo do União, entre as ruas Solimões e Turiaçu.
Mais adiante a Rua Araguaia, calçada com paralelepípedos, abrigava além do Nilo Peçanha o Albergue Noturno, mais de uma oficina de torno e solda, bazares diversos, padarias, bares e lá embaixo, perto da Rua Guaporé, o clube japonês, a sede da Escola de Samba Unidos Independente e quase colado, um clube que animava as noitadas dos sábados e nos carnavais não deixava folião ficar parado.
Paralela à Araguaia já existia a Rua Tietê, que naquele tempo era uma espécie de estradão de terra conhecido como bananal. Era, na verdade, um gancho para os pais amedrontarem seus filhos. Os adultos diziam que o bananal era perigosos, pois o homem do saco costumava passar por ali para pegar crianças.
O Campo do União era cercado pelas ruas Javari, onde morava a colega Ivone, a Juruá, onde eu morava numa casa de madeira sem pintura e envelhecida, a de número 181, além da Solimões e da Turiaçu. Rodadas dos campeonatos amadores eram realizadas nas tardes dos sábados e nas manhãs e nas tardes dos domingos.
À noite somente as lâmpadas avermelhadas dos postes de madeira davam relativa claridade. Ainda assim os meninos brincavam, senão de bola por causa do escuro, com atividades mais propícias para o momento: pega-pega, mãe da rua, pique, esconde-esconde e, lá no outro lado, numa área onde a grama ainda resistia, as meninas aqueciam-se do frio ou refrescava-se do anoitecer modorrento por causa do calor com as brincadeiras de roda.
“Pau rolou, pau caiu, lá na mata ninguém viu...” Às vezes passava das onze e ainda se ouvia uma ou outra cantiga. “Passa passa cavaleiro, pela porta do carneiro, a última a de ficar...”
Era tudo terra naquele cantão da Vila Nova. Mamona para usar no estilingue dava no quintal. Mamãe ouvia um programa de rádio chamado “Aconteceu”. Eu tinha um cachorro chamado Lulu. Mestição feio, sujo e amarrado com corda, porque as galinhas ficavam soltas para se alimentarem de resto de comida e minhocas.
Um enorme pé de abacate ficava colado à cerca que separava o nosso quintal com o de dona Maria Baiana. A mesma cerca servia para o maracujá doce, que na época da florada trazia abelhas. Lá no fundo um pé de limão rosa dava para a família e os vizinhos. Os três pés de manga eram rosa, aquelas miúdas e esfiapadas. Uma touceira de cana atendia a todos quase o ano inteiro.
Papai tinha uma bicicleta e entregava doce nos bares. Mamãe não tinha fogão a gás. O dela era de cimento, construído na cozinha. Ela também sentia a falta de uma geladeira. Nas vésperas dos natais e dias de ano mamãe ia no mercado Ribeiro, lá na Rua Araguaia, e comprava uma dúzia de guaraná Bem Bom. Eram garrafinhas de vidro. Metade seria distribuída no almoço e metade na janta.
Na falta de geladeira as garrafinhas eram refrescadas dentro de uma bacia de alumínio com água tirada do poço. Eu e minhas irmãs furávamos as tampinhas para dar pressão na bebida, que esguichava pelos buracos da tampa. Ás vezes papai comprava um garrafão grande de vinho tinto. Para as crianças mamãe mistura com água e adoçava.
Assim era o cotidiano até que veio a nossa primeira televisão, na casa da colega Ivone. A família dela era solidária. Deixava a porta da sala aberta e aumentava o volume do aparelho. E os meninos deixavam as brincadeiras e disputavam os vãos das balaústres de madeira da cerca de casa de Ivone.