sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Conto - Edinalva...


O que pensa Rodrigo da vida? Eu, que sou mãe e pai, custo-me a crer que haja um horizonte na direção que os olhos do menino apontam. Se há luz ou sombra não sei. Se as pessoas que passam pela frente são visíveis tenho dúvidas.

Às vezes eu penso por ele. Dou-me ao direito de escolher caminhos, ambientes, situações e clima. Vou pelo lado da rua que dá sombra para evitar o sol em seu rosto. Se chove procuro a proteção das marquises. Juro que não é por mim. É por ele.

Ontem comprei roupas. Fui clara comigo mesma que o melhor seria o jeans sob a camisa verde clara. Nem me toquei que as peças serão vestidas nele, não em mim. E se ele preferisse um conjunto de malha macia e confortável?

É que sou também irmã dele. Mãe, pai, irmã e confidente, mesmo diante do silêncio que a vida colocou entre nós. Eu falo sem saber se ele quer ouvir. Penso que minha voz o tranqüiliza, que dá a ele a certeza de que alguém o quer ouvindo palavras ditas com franqueza. Até as broncas saem carinhosas e olha que é um carinho extraído do coração. Não há maquiagem na entonação.

Imagino como seria se fossemos iguais. Quem de nós dois seria mais arteiro? Qual de nós aprontaria com o outro? Seriamos tão próximos não sendo diferentes? Tenho minhas dúvidas.

Ele, adolescente de senhas guardadas na memória para atender as namoradas, teria pouco tempo para mim. E na miséria que me seria dedicada provavelmente brigaria por seu espaço e seus direitos de homem e filho mais novo.

Reivindicaria o uso do carro da família e eu ficaria a pé. Teria o domínio do controle da tevê por assinatura. O seu espaço no sofá seria aquele de melhor ângulo para a tela de plasma de quarenta e duas polegadas. O melhor computador seria o dele. O quarto com janela para as vizinhas adolescentes seria reservado a ele.

Duvido também de mim se as circunstâncias fossem outras. Teria os meus namorados e pouco ligaria para as dominações dele. Faria de conta que ele manda. Mas com sutil estratégia conquistaria mais do que o controle da tevê, o melhor lugar do sofá, a janela mais aberta para um lugar do mundo que só interessa a mim. E faria dele o meu motorista.

Meu irmão! Penso que você se submete a mim e eu me submeto a você só por causa da vida que te trouxe assim. Verdade! A sua paralisia cerebral tira muito da minha vida. Mas me dá a oportunidade de conhecer você assim, entregue aos meus cuidados. Quieto e carente dos meus caprichos.



quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Crônica - Comam churrasco, não matem Andança

Ouço Andança, de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi, com fone de ouvido. Porque quero curtir a letra e engolir a melodia pela alma:...olha a lua mansa... (me leva amor) / se derramar / ao luar descansa meu caminhar ... (amor) / meu olhar em festa... (me leva amor)...

É como se fosse uma mixagem bem feita. Duas músicas em uma. O fone de ouvido a que recorro não é para melhorar a audição. Entende-se Andança até num tocador de CD precário e em baixo volume.

O problema é que uma geração lá de trás adotou a música para churrasco. Do tempo quando Jorge era Ben, não tinha inventado o Benjor. Que Chico escrevia poesia, compunha e cantava. Gil nem havia experimentado o poder. Já Caetano era tão prepotente quanto agora.

As músicas desses talentos animavam botequins e encontros de cerveja e carne queimada. Estudantes e intelectuais, principalmente, sabiam a letra. Poucos cantavam. Mas tentavam. Alguns tocavam, outro tanto arranhava cordas de violões. E coitado dos atabaques!? Detonavam.

Depois de dois copos ninguém percebe desafinos. O que for gritado é som. Aliás, a intenção de cantar entre goladas e pedaços de pão e churrasco era manifestada nos preparativos do encontro.

Quem vai providenciar a carne? Fulana fica responsável pelas bebidas. E o violão? Liga para o Beltrano e peça para ele trazer aquele vizinho que toca bem pra caraca. O atabaque deixa que eu levo o meu.

Na hora da festa a música até que começava afinada. É que o puxador normalmente entendia do assunto. E quem cantava sozinho era o cara do violão, dono da situação e tão hábil no dedilhar quanto no vocal. Só então vinha o desajeitado, atabaque que comprou com dinheiro do décimo-terceiro embaixo do braço.

E tudo virava rumba, sunga, tango e samba. O cara pensava que sabia ser percusionista. Achava que tocava. Mas na verdade batia no treco. E a partir dele esculachando na música chegava sempre aquele, rapidinho para ficar bêbado, querendo cantar Andança. Era o estrago, mas vinha sempre a turma dissimulada: “Nossa ele toca tão bem o atabaque. E como canta...”

Outro dia, sábado à noite, percebi churrasco na vizinhança. Pelo cheiro e pelas músicas. Cantaram Andança tão mal que deu vontade de chorar de raiva. Eram, provavelmente, cinquentões lembrando dos bons tempos. Mas o que fizeram foi matar Andança. 


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Conto - Teatro da vida


O pano desce, fim do espetáculo. Atrás restou um palco no escuro. Atores e atrizes são personagens que se vão após interpretar mais uma peça. Apenas uma, dentre tantas de desfechos variados.

O teatro da vida é imprevisível. Roteiros são rascunhados para pautar trajetórias, mas há acasos que exigem mudanças. Nem sempre os bandidos são presos e os mocinhos encerram suas participações com beijos apaixonados nas donzelas.

O que dirá a platéia da moça culta que amou o ignorante? Haverá, com certeza, quem aposte que foi por ironia do destino. Outros concluirão que o amor nunca enxerga diferenças. É resultado de alma na alma, nada mais.

A diarista preferia ser apenas protagonista. Jamais cogitou o papel principal. Acostumada a um cotidiano longe dos holofotes, contentava-se com as aparições em segundo plano, de pouca fala e nenhum passo de dança.

Às seis da manhã, rotineiramente, sentia-se confortável sendo uma de tantas pessoas na fila do ponto de ônibus. Em seguida, no corredor apertado do coletivo, ia em direção ao trabalho ciente de integrar uma multidão de iguais: todos trabalhadores e estudantes a caminho do pão e do saber.

Verdade, a diarista recebia vez ou outra olhares atraídos pela beleza natural que ela trazia no rosto e no corpo. Não era uma boniteza de maquiagem e de vestimenta. A boniteza dela é daquelas que ficam gravadas na mente de quem vê.

Lá nos seus trinta e poucos anos de idade, a diarista nada tem de extraordinário. Talvez por isso seja bela. Nem alta e nem baixa. Nem gorda e nem magra, nem loira e nem morena, nem nova e nem velha. Sim, um tanto soberba. Poucos companheiros diários de lotação mereciam um diálogo com ela. Na insistência, entregavam-se ao monólogo mal sucedido e sem desfecho, pois o enredo se perdia ao perceberem que o verbalizado sofria desprezo.

Enfim, cenas comuns contentavam a diarista. Garantiam a ela certa tranqüilidade. Protegiam-na dos assédios. Não havia qualquer chance dela subir ou descer no ranking das celebridades. O jeito comum de viver garantia à diarista ser percebida como tantas outras pessoas que empurram o mundo para fazê-lo girar, de forma que a noite ocupe o dia e horas depois retribua cobrindo a terra com o manto da escuridão e do descanso.

Autores do teatro da vida são cruéis. Na descida do ônibus a travessia da avenida foi fatal. A moto ultrapassa o carro e não poupa a diarista, que ganhou manchete na página policial: “Doméstica cruza avenida fora da faixa e morre atropelada”.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

Crônica - Ri por último, menina


Lá se foram os olhinhos sonolentos da minha coleguinha de trabalho. Gisele mudou da água para o vinho. Ri sozinha e se coloca mais disposta nos assuntos de trabalho. Está participativa, embora em alguns instantes se coloque longe, lá onde o coração gostaria provavelmente de estar.

Ah, o amor! Gisele está namorando. E precisa tanto por causa de um namoro? Ela olha para o monitor do PC e ri. Confere as mensagens no celular e ri. Atende uma ligação telefônica e ri. Carece dar tanta risada? Será que é a alma que pede para rir quanto mais for possível?

É que Gisele sofreu muito pela ausência de uma paixão. Ela é novinha na idade e na cara de criança, mas pegaram pesado no pé da coleguinha. Pelas costas disseram dela ser uma mulher encalhada. Que maldade! Quantos tentaram se aproximar e dos muitos que fizeram fila nenhum teve sucesso. O coração de Gisele estava fechado por culpa de um critério: tem que ser alguém que no primeiro olhar me faça sair do chão.

A princípio ela procurou sapos na beira dos lagos. Os que encontrou foram descartados pois não havia a possibilidade de algum deles virar um príncipe após o beijo. Na festa de Antônio ela foi a primeira a correr às fatias de bolo para levar a sorte: encontrar dentro uma imagem do santo casamenteiro. Mas nada...

Os colegas haviam combinado fazer uma promessa em nome dela. “E qual promessa a gente cumpre se a Gi encontrar um namorado?” Três semanas depois ninguém havia sugerido algo sólido e praticável. Sinal que a turma pouco se importava com a solteirice da colega. Na verdade dissimulavam compreensão e solidariedade nos momentos em que a menina se punha desanimada na frente do monitor do PC, olhinhos sonolentos, sobrancelhas caídas, cabisbaixa, entregue e sem esperanças.

Foi que um dia Gisele saiu para o almoço acompanhada de uma galera, mas solitária no meio da multidão. Então chegou o colega de um outro setor e ocupou a mesma mesa. Por descuido, na hora de encher o garfo ele derrubou o dito na mesa. Desconcertado catou o garfo errado, da Gisele. Foi o suficiente. Funcionou como o beijo no sapo que vira príncipe.

Ele estalou os olhos em Gisele e imaginou-a uma princesa. Ela revirou os olhinhos a tal ponto que de sonolentos se transformaram em vivos, abertos, com vontade de enxergar, devorar, se apaixonar e amar. Formam um belo casal. E no ambiente de trabalho Gisele continua rindo sozinha. Ah, o amor!


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Crônica - A rebelião dos seis


- Papai, vou ser político quando crescer.

- Político? Quem colocou isso na sua cabeça? Tem é que ter uma profissão. Pode até ser advogado. Mas de preferência seja médico. Ou engenheiro. No mínimo um agrônomo, mesmo que seja para vender agrotóxico para multinacional. Dá um bom dinheiro...

Essa conversa rolou mais de três décadas atrás. O cara ainda procura o velho pai, eterno companheiro de ombros, para falar sobre o futuro:

- Pai, ainda penso ser político.

- Mas como, filho? Você já não é vereador? Que eu saiba vereador é político.

- É que eu quero ser um grande político. Quero ser amigo da Gilma. Pretendo fazer uma administração técnica e olho no olho do eleitor dizer: meta é isso, meta é aquilo. O povo precisa de definições.

- Isso é pouco, meu filho. Muito pouco. Você consegue tirar essa batata quente da boca quando estiver conversando com o eleitor?

- Pai, eu fiz curso de oratória e tenho atendimento fonoaudiológico semanalmente. Já consigo falar igual repórter da filial da Globo no Paraná. Narro uma crônica policial como se estivesse declamando uma poesia de amor.

- É pouco. Consegue colocar a alma nas palavras, filho?

- Veja o que faço. Escuta e sinta: “Eu e meu vice vamos fazer isso e aquilo”.

- Não vi alma nisso. Está molenga. Nem sendo o meu filho consigo acreditar no que você diz. E por que não você? Tem que ser o seu vice?

- É estratégia pai. Assim também como é estratégia o cabelo esquisito que usei quando falei que sou amigo da Gilma. Foi para parecer autêntico.

- E quando você entrou falando com aqueles olhos fechadinhos, de sono, preguiça e pouco caso, filho? O que aconteceu.

- Ali me assumi como sindicalista, pai. Cansado de tantas lutas.

- O que? Quando você foi sindicalista na vida? Nunca vi você com um adesivo de campanha salarial no peito? E essa história de meta é isso, meta é aquilo? Isso é muito confuso. Não precisa explicar a ninguém o que é meta. Tem é que cumprir com as metas. Concorda, filho?

- Pai, o senhor não está me entendendo. Eu disse que quero ser político. Isso exige mais do que meia dúzia de faculdades. É acerto de um lado, acerto de outro, bom dia para cá, boa tarde lá e sempre aprendendo. As coligações, por exemplo. Pai, é direita, centro, centro-direita, centro-esquerda, esquerda, em cima, abaixo, na meia altura, contra o sol, acima da chuva e assim por diante...

- É complicado, filho. O que eu posso dizer? Vamos amadurecer isso. Acho que você está muito prematuro para a política. Daqui a uns trinta anos, quem sabe?

E foram ambos assistir Pedro Bial. Depois rodaram um DVD do programa da Fátima Bernardes. Comentaram o CQC e elogiaram Ana Maria Braga. Procuraram na internet novidades sobre o programa do Ratinho e encontraram citações sobre Rafinha Bastos. Escutaram tchá tchá tchá tchum e lê re re, lê re re três vezes seguidas. Decidiram comprar um Gol porque Neymar aparece com uma versão na cor vermelha. Depois de exaustivamente aculturados - e como - deram-se ao bom senso de esquecer a política como carreira. É que, como intérpretes das seis coligações que disputam a Prefeitura de Londrina, são rebeldes dissimulados. Por que? Porque ninguém apresenta nada que os leve ao cargo. Significa que ninguém quer chegar lá e está fazendo corpo mole. Ou seriam tão burros assim?

- Mãe, por que o pai e o meu irmão estão chamando os seis de bundões?

- Não sei filha. Desconfio que andaram falando de sacanagem o dia todo...


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Conto - Constrangimento


Jeans surrada e camisa de botão mal passada, de cor pouco sóbria, dão o alarme de minha presença naquele lugar requintado. Do chão ao teto é um luxo. Até as poltronas que acomodam homens encapados com paletós de corte! Nunca vi igual nas casas da vizinhança de onde eu moro.

Mulheres lindas exibem sorrisos aos presentes. E que riso! De lábios brilhantes e avermelhados. Delicadamente abertos, contrastam com os dentes brancos devidamente enfileirados. Nada parecidos com os meus, tortos, escurecidos, desgastados e quando refeitos, relaxadamente moldados.

Nem me perguntem como vim parar aqui. Sou serviço geral de uma empresa e de repente me vi com a tarefa de entregar uma correspondência de urgência. Para quem e onde? Lá na vernissage de uma exposição. Mas assim, mal vestido? Claro, sua função é procurar um recepcionista na entrada e pedir para chamar fulano. Mas entrega pessoalmente, espera o fulano chegar até você.

Certo. O que mandarem eu faço. Chego no local e já na entrada recebo olhares de reprovação. Estou maltrapilho diante daquela gente, mas sou limpo e não fedo. Mas as pessoas me encaram. Se tenho que fazer, faço. Não acho um recepcionista, recorro a um garçom. Ele me diz que a bebida é só para os convidados. Tento retrucar, ele me dá as costas e se vai.

E as pessoas me olham. Chego a me sentir despido de tantos olhares de censura. Sou tão feio assim? E aquela moça? Parece mais simples, embora dentro de um conjunto de cor escura. Ela deve me ajudar. Apresso os passos, quero me ver longe dali o quanto antes. E ela escapa para dentro de um reservado feminino.

Então, na volta que dou para fazer o retorno dou de cara com o meu chefe, a pessoa que deve receber a correspondência. Está acompanhado por uma bela dama que não tem nada a ver com a Ednalva, a secretária executiva da firma com quem ele se casou. A Ednalva virou patroa, mas os laços de coleguismo com os empregados ela conseguiu manter. Essa que está com o patrão me fuzila com os olhos. E ele me puxa pelos braços até o corredor. Levo bronca e sou ameaçado de demissão. Agora eu fico nessa agonia. Devo ir ao trabalho amanhã?


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Conto - Redemoinhos


Travesseiro de floco de espuma fez redemoinho na cabeça do menino. Cabelo grosso espetado não há água que assente. Dá ao moleque um jeito de arteiro. De aluno que vai matar aula. De dono de cão vira-lata que puxa animal pelo rabo. De empinador de pipa que arrebenta linha dos mais novos.

Redemoinhos lembram histórias medonhas. A idosa fala de outrora e lembra: redemoinho é o saci-pererê chegando para aprontar travessura. E se entrar no meio dele com uma garrafa e uma peneira vai prender o endiabado de uma perna só com gorro vermelho e cachimbo na boca. Mas há quem sugira: atira uma faca no meio do redemoinho e o saci vai embora.

Prender o travesso pouca valia tem. Melhor que ele se vá. Use a faca, arremessa de longe, nem precisa mirar. Deixa saci ir embora para ele entrar em outra história. Mal o encapetado não faz. Ele quer fazer graça para poder gargalhar das coisas engraçadas que faz.

Redemoinhos bagunçam o querer e o não querer. A filha do contador quer namorar o filho do dono da padaria. Ele só tem olhos para a filha da dona do bazar. Esta namora o filho do proprietário do açougue. E este jura amor pela namorada, mas bem que tem queda pela filha do contador.

Redemoinhos provocam sujeira. Foi assim no quintal da dona-de-casa. Ela varreu e se elogiou pela limpeza do lugar. E veio o vento em espiral trazendo folhas e papeis de bala. Deixou um chão imundo a pedir vassourada. Besteira limpar de novo, imaginou a dona-de-casa. Porque neste tempo de calor e ar parado logo vem outro torvelinho rodando, trazendo pó e mexendo na imaginação das pessoas.

Redemoinhos vão e voltam. Faz tempo não passa um nesta rua de prédios e asfalto. A zeladora da loja em frente garante que viu um nem tanto tempo. Ele veio sem força e torceu de leve as ramas da árvore da calçada. Nem folha arrancou. Só marcou presença para avisar que ainda existe e traz saci-pererê, de gorro vermelho e cachimbo na boca, para armar contra os descuidados e sair rindo.

Redemoinhos já não metem medo. Agora trazem lembranças dos descampados de antigamente a quem vive atravessando avenidas movimentadas de carros conduzidos por pessoas que trazem na cara o jeito de sacis furiosos que não gargalham. Estes de hoje em dia xingam, ofendem e são desaforados.



terça-feira, 21 de agosto de 2012

Conto - Fantasmas


É como engolir certa dose de remédio sem atentar para os efeitos colaterais. Elimina a dor de cabeça e provoca sono, moleza e gastrite. Nossos fantasmas são assim. Sem véus brancos a cobrir de cima abaixo, mas tão intocáveis quanto os da outra dimensão, eles atormentam.

Olinda carrega três. Ela os define como arrependimentos: o casamento com quem não ama, o estudo que deixou de completar e a mais traumática, feito um encosto, de quando ainda jovem rompeu com a irmã, Rosemeire, após briga por um motivo fútil. Olinda namorava Gervásio, que se engraçou com Rosemeire, que investiu no namorado da irmã com o endosso da mãe, Maria da Conceição.

Dezessete anos depois daquela noite de sábado, quando cabelos foram arrancados e adjetivos pouco apropriados desmancharam a relação de ambas, ainda ecoam os gritos, o choro, as ameaças e a verbal manifestação de revolta de Olinda: “Vou sair de casa”. Nunca mais as duas se viram. Nenhuma delas ficou com o disputado.

Olinda foi morar com amigas. Freqüentou as aulas da faculdade de pedagogia até se ajuntar com Lupércio e repartir com ele a mesma cama. Houve, sim alguma coisa parecida com paixão. Somente isso. Eram colegas de escola e optaram por uma amizade sem fronteiras, em que os ombros são oferecidos como suporte e até as necessidades físicas são consentidas.

Então, se é assim, porque não unir o útil ao agradável. E leva-se até onde der. Amanhã, se preciso, separam-se os móveis e os corpos. Será? Foi dúvida fundamentada na vida. Porque nem paixão passou por perto. Só pareceu ser algo aproximado. Cada momento mais profundo foi apenas desafogo e permissividade assumida. Parecia ser consciente, mas Lupércio fincou na vida de Olinda feito uma estaca de aço cimentada. Por piedade um do outro estão juntos há cinco anos. “Nem o nome dele me atrai”, disse Olinda a uma confidente.

O fantasma daquela briga é que se reproduz. Gera outros fantasmas que se multiplicam. Gervásio passou e nem é lembrado como causa do conflito. O que tortura são as palavras que foram ditas de uma parte e de outra. Dentre elas, algumas verdades que jamais seriam explodidas se Olinda e a irmã não tivessem brigado. Ficariam escondidas dentro de cada uma delas, molestando tanto quanto atrapalham depois que foram divulgadas.

Amor e estudo incompleto por causa de um homem da qual nem se lembra a cor dos olhos. Uma irmã da qual nem se tem notícia. Como estaria Rosemeire hoje? Quantas vezes emprestamos roupas uma da outra? Por que ela me chamou de falsa e desleal? Eu tinha que falar da minha mágoa por ela ser a queridinha da mamãe?

Fantasmas apertam o coração. Aumentam os receios de tudo e de todos. Acovardam quem é perseguido por eles. Amarram as mãos e a alma, acorrentam os pés e fazem a gente fugir das possibilidades. O fantasma de Olinda é o tempo que ela perde costurando uma ferida.


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Miniconto - Travessuras

Menino levou bronca desde cedo porque deixou a tampa da garrafa térmica aberta escapando calor do café. Molhou a toalha da mesa com leite e lambuzou cabo da faca com manteiga. Fez no chão um monte de cisco de pão e ainda lavou a boca na pia da cozinha pensando que ninguém olhava. Foi pego em todas as infrações e mereceu sermão até quinze minutos depois. Já na saída para a escola arrotou na cara da irmã e levou safanão. Baixinho revidou com ameaça de soltar um pum quanto a pegasse dormindo no sofá. Seguiu a pé por uma rua que não dava no ponto de ônibus. Abusou dos cachorros da vizinha esvaziando água gelada do bebedor de plástico que levava na mochila. Urinou no canteiro do idoso da esquina e quebrou mais adiante os galhos de uma roseira. Satisfeito se indireitou a meia quadra do portão do estabelecimento de ensino porque estava cinco minutos atrasado. Foi chamado à secretaria e mentiu. Disse que o ônibus estava lotado e ainda fez desvio por causa de obras no percurso. Vinte anos se passaram. Ele agora é político e disputa mais uma eleição.

 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Conto - A manequim despida


Hora do almoço, as pessoas vão e voltam de algum lugar para outro. Misturam diferentes expressões e manipulam o tempo de acordo com suas necessidades. Há quem prossiga sério e escancare a ranzinza de uma manhã atribulada e confusa. Outros conversam sozinhos imaginando interlocutores. Tem gente que ri. Devagar, rápido ou em passadas normais integram a multidão que atravessa ruas, aglomera as portas dos restaurantes, aspira e expulsa o ar, morde, coça, canta e xinga ao mesmo tempo.

Sinto-me exposta. A minha intimidade está despida sobre o pedestal em que me coloco. No canto de uma vitrine posso ser vista por pessoas de variados gêneros, idades, crenças e convicções. Estou imoral e sem como me proteger. Indefesa, nada é capaz de esconder a minha nudez.

Posso apenas perguntar a mim mesma e pensar uma resposta que me convença o contrário do que tenho certeza que é: estou vulnerável. O que a mulher grávida pensa da minha fraqueza como mãe? Sei que ela pensa isso de mim, uma mulher nua. Seria condescendente ou dura? Acho que ela se permitiria entrar no jogo equilibrado da razão e da paixão. Assim daria pontos para ambos os lados, me premiando com um leve desprezo. E este viria na forma de uma compaixão.

Piedade! É o que leio no semblante do ancião. Piedade de mim, nua na vitrine. Vendo a minha intimidade descoberta ele me enxerga gananciosa e egoísta. Mal sabe ele que se fui para este caminho andei levada por necessidades. Tive que agir por mim na busca do tilintar consistente das moedas que me sustentam. Matei, sim, a minha fome. E se não fosse eu mesma a homicida das minhas carências, quem teria carregado a arma e puxado o gatilho em meu lugar?

Aquela criança! O que faço agora? Mochila nas costas, ela vem descompromissada. Houve dias em que percebi nos olhos da menina a franca admiração ao ver-me vestida. Tive para mim mesma que a minha beleza a despertava. E em mim ela se espelharia quando adolescente. Hoje estou nua. Como posso me esconder assim exposta. Ela saberá das minhas deficiências e talvez consiga ler as mentiras que escondo dentro das roupas em que nas outras ocasiões eu me ponho. E vejo-a passar, disfarçando olhar. Ela fica constrangida com a minha nudez.

Sou manequim de vitrine. Sem voz e sem gesto eu vendo roupas. Vestidos, blusas, saias, biquínis e peças íntimas se ajeitam no meu tamanho. Hoje estou despida e exponho carência, solidão, tristeza, angústia e imperfeições. A minha nudez esconde a virtude que eu tenho de ser manequim e caber em qualquer peça do vestuário da loja de confecções.


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Crônica - Somos nós os patetas?

Alto, magro e desengonçado o cachorro da raça Bloodhound anda igual um homem, pois quem o trouxe ao mundo assim o quis. Já beira os 80 anos de idade, mas nunca aparece como um velho afetado pelo tempo. Na verdade, ele nasceu do mesmo jeito em que se encontra hoje. E olha que nunca alguém se dispôs a pedir a ele a fórmula do rejuvenescimento.

Trapalhão, para não dizer que é bobo, este cão é motivo de risadas. Cá pra nós, o cara é bondoso e gosto de agradar os outros sendo engraçado. Por isso o apelidaram de Pateta, embora o seu dono tenha colocado no registro de nascimento um nome até pomposo: Dippy Dawg. Há quem o chame também de George Geef. Apareceu no cinema ainda com o nome de Goofy Goof.

Injustiça. Adianta ter um nome oficial e outro alternativos se o apelido pegou? Pateta, no dicionário de sinônimos da língua portuguesa, é pesado: burro, estúpido, idiota, ignorante, imbecil, inepto, lerdaço, néscio, palerma, parvo e tolo. E nem precisa de mais. Estes são o bastante.

Culpa de que e de quem? De ser bonzinho, sobretudo. O Pateta que Walt Disney pariu em 1932 não rouba e nem sacaneia. Talvez ele sofra da necessidade de ser gentil com as pessoas e peque por querer ser divertido. E imagina-se que seja acometido de uma solidão torturante. Em 80 anos de vida nunca definiu uma parceira.

E olha que tentou. Quantas vezes os leitores das histórias em quadrinhos pensaram que Pateta se aproximava de Clarabela, a vaca que está mais chegada ao Horácio, o cavalo que conserta carros? Mas Pateta nunca efetivou e continua solteiro num mundo pequeno e confomista, trocando cenas com os ratos Mickey e Minnie e até compartilhando ações no cinema com o Pato Donald e seus sobrinhos.

Coadjuvante! Será que é por ser Pateta? Um burro, estúpido, idiota, ignorante, imbecil, inepto, lerdaço, néscio, palerma, parvo e tolo? Tem parte de verdade nisso. Quem lançou Pateta ao mundo, antes dele ser adotada por Disney, foi o diretor de cinema Wilfred Jackson. O papel dele na película era de ser um trapalhão no meio de uma platéia, gargalhando até com o que não tinha graça. Gargalhava tanto que irritava. Portanto, Pateta nasceu para incorporar todos nós naqueles momentos de descontrole. Às vezes a gente gargalha até da nossa desgraça.

Mas sacana nunca. Pateta não corrompe e nem é corrompido. Pateta não manda pagar mensalão para deputado federal votar projetos favoráveis ao governo. Pateta não guarda dólares na cueca. Pateta é só um bobinho que incomoda, mas não faz mal a ninguém.

Ouvi o pronunciamento firme e claro de um advogado que defende um político suspeito de ser bandido. É apenas mais um suspeito dentre tantos que usam os corredores das câmaras municipais, das prefeituras, das assembléias legislativas, das sedes dos governos estaduais, do palácio presidencial e do Congresso Nacional para tramar em benefício de si próprio.

Em tom de questionamento ele supôs que um ex-presidente, também suspeito de andar à margem, seria tão pateta a ponto de desconhecer que um esquema vergonhoso de desvio do dinheiro público era tramado dentro do local de onde ele governa o País. Claro, o causídico se referiu ao burro, inepto, tolo, lerdaço, palerma e parvo. É provável que tenha excluído o estúpido, o idiota, o ignorante, o imbecil e o néscio, embora uma coisa tenha muito a ver com todas as outras. Mais provável ainda que o advogado tenha jogado um manto de pureza sobre a pessoa que ele acusava. Do tipo, não ficou sabendo da maracutaia porque é jumento de olho tapado.

Aliás, melhor se fosse assim. O problema é que o acusado pode ser ignorante, mas burro nunca demonstrou ser. Então acho que o Pateta somos todos nós. E haja motivos para gargalhar.


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Conto - Produtos à mostra


Branca de Neve comprou uma loja de variedades. Decidiu virar comerciante quando se tocou ser talentosa com as vendas. Foi num breve período de voluntária na mercearia do cunhado que ela percebeu ser excelente nos negócios. Em uma semana vendeu o estoque de carvão úmido encalhado há três anos no estabelecimento sob suspeita de negar fogo.

Metida num vestido dois palmos acima dos joelhos, sem mangas e decote quase lá, Branca de Neve subia e descia a escada de alumínio para pegar lá de cima, além do carvão, caixas de detergentes, pacotes de sabão em pó, fermento, farinha de trigo, óleo de soja e outras bugigangas. Diziam dela os fregueses barbados: “Que mulher esforçada!”

E a batata, já com as raízes estourando? Branca de Neve zerou. Botou umas caixas do produto no chão e ela mesma fazia questão de selecionar para os fregueses, que faziam fila e nunca reclamaram da demora. Agachadinha, Branca de Neve mostrava-se farta de qualidades que escapavam do decote e da subida do pano acima da metade da coxa. E diziam dela os pacientes compradores de batatas: “Esta mulher entende do negócio!”

Assim foi com o queijo encapado com mofo, a mortadela esverdeada, a lingüiça rançosa pendurada no varal feito de arame enferrujado, as vassouras com cabos quebrados, as pastas de dente endurecidas pelo tempo, os sabonetes sem cheiro e a carne de sol cujo aspecto nem Totó, cão sem dono das proximidades, ousava cheirar para testar o apetite. Tudo vendido e diziam dela os compradores: “O que esta mulher mexe tem um gosto especial!”

Branca de Neve, agora no seu próprio negócio, vai vender abajur, lâmpadas, isqueiros, toalhas, panos de prato, canecas, canetas, copos, panelas e tapetes. Já tem gente, três dias antes da inauguração da loja, imaginando como ficarão expostos os produtos: três palmos acima dos joelhos, mangas cavadas e decote lá.

Fantasia e ilusão. Ninguém ainda sabe, vou adiantar: Branca de Neve convocou os sete anões para atenderem em sua loja de variedades. Ela anuncia a abertura do bazar enquanto decora o seu escritório, lá em cima, de onde poderá, por uma janela, observar o movimento lá embaixo. Espera uma fila de homens comprando toalhas, lâmpadas, panelas, panos de prato e outras bugigangas. Suas qualidades de mulher ela pretende usar só nas campanhas promocionais que serão lançadas quando o movimento cair.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Crônica - Consortes com ou sem sorte


Fiel consorte de Getúlio na cama e nos locais alternativos da casa para o desfecho físico do amor, Leda só compartilha com o cônjuge o destino. Juntos na alegria e na tristeza, tanto quanto no saldo bancário suculento e no limite estourado do cheque especial. Trinta anos, uma vida.

Bons dicionários dizem que o consorte é aquele que compartilha da sorte. Títulos, bens móveis e imóveis e até poder pertencem aos dois. Na prática a teoria funciona: Getúlio mancha a cueca e quem lava é Leda. Leda prepara a comida e quem fica com a fatia mais nobre do assado é Getúlio.

Sujeito comilão! É sempre o primeiro a fazer o prato. Pega da carne a parte com gordura e deixa para ela os fiapos com nervos. Tem gente que diz que o consorte é o próprio: cônjuge. Divide não só a sorte, mas também o destino.

Eis o problema, destino. Getúlio bate com o carro na quina do muro e a culpada é Leda, acusada de tê-lo levado à distração só para falar mal da vizinha. Na outra via, Leda troca de cabeleireiro e se enfurece com o corte a mais nas pontas do chanel. Culpa do Getúlio, que ficava enciumado com o carinho do anterior à esposa.

Certa vez ambos faziam amor no quintal e foram flagrados por visitas, pessoas que invadem sem ao menos bater o portão com força. Leda responsabilizou Getúlio porque o grupo de amigos que chegou era mais íntimo dele. Getúlio devolveu: não fosse a tara dela de querer sair da rotina...

Brigas acontecem. No supermercado ele empurra o carrinho de compras e ela escolhe o que vai levar para casa. De cada cinco itens que Leda bota no carrinho Getúlio elimina pelos menos três. Isso tem troco. O desconto é na cerveja que ele precavidamente coloca sob as outras compras. Ela faz que não vê e só na boca do caixa reduz a quantidade de latinhas pela metade.

É um quebra no caminho de volta para casa. Getúlio, avermelhado de raiva, avança no sinal amarelo e tira fina de ônibus do transporte urbano. Leda se treme toda mas não dá o braço a torcer. Sintoniza o som automotivo numa FM universitária que roda grupos alternativos cantando músicas de trinta anos atrás com roupagem e arranjos vencidos.

E nova discussão se inicia. Leda diz que prefere os intérpretes de agora. Getúlio retruca que os alternativos fazem sujeira em cima da inspiração, do talento e da criatividade dos artistas de outrora.

Com sorte eles terminam de pagar o financiamento da casa daqui a oito anos. É dívida pesada que nem permite a troca do carro por um modelo de câmbio automático, direção elétrica, ar acondicionado e coçador de costas no encosto dos bancos. São consortes e vivem bem nas brigas e nas conciliações. Não fosse assim teriam se separado no terceiro mês após o casamento. 


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Crônica - Outras olimpíadas


Arruma correndo essas cadeiras. Tem pernas abertas que nem asa delta. Bota uns pregos, não gaste com parafusos, é dinheiro jogado fora em madeira de pinus. Na primeira sentada de uma bundona as juntas rangem e o jogo volta. E ninguém está aqui para brincar de cadeira de balanço.

Enfileira certinho. Na simetria desde que o chão permita. Se não der vai torto mesmo. Monta uma espécie de arquibancada. Desliga essa tevê, está enchendo o saco. Ninguém agüenta mais o Neymar anunciando telefone e carro da Volks. Esse menino tem é que jogar futebol.

Vê se manda o Bernardinho calar a boca. Irrita ouvir a gritaria desse cara. Limpa depressa a trilha até o sacolão da esquina. Vai ser uma espécie de 800 metros livres com largada às sete e cinqüenta e cinco. Quem chegar primeiro leva: dois quilos de tomate na promoção porque o dono do estabelecimento comprou para vender no sábado e no domingo, por quatro e setenta o quilo. Sobrou mais da metade e a desova está saindo por dois e noventa e nove.

Dá aproveitamento. Quem chegar primeiro leva o melhor. Separa os moles para fazer uma calda. O mais durinhos ficam para a salada. Aproveita e confere o preço do ovo. Vê se tem daqueles miudinhos. Pede para o comerciante deixar por dois e setenta a dúzia. Diga a ele que o ovo não precisa ser de galinha que engoliu as poucas medalhas que o Brasil trouxe de Londres. Pode ser de galinha que por falta de ração se alimentou com tampa de garrafa de refrigerante.

Já é sete e cinqüenta. Quase hora da largada. Tem que correr na frente. Confere as tiras dos chinelos senão pode chegar descalço na linha de chegada. Cuidado. Pode haver gente mal intencionada no caminho. Ex-presidente do Brasil, ex-ministro, governador do Paraná, prefeitos, vereadores, deputados federais e estaduais, presidente da República, titular do primeiro escalão e candidatos às eleições de sete de outubro costumam aparecer e atrapalham.

Atenção. Se tiver um cara conhecido como Carlinhos Cachoeira dê meia volta e desista da prova. Volta ligeiro antes que ele te enlace e te meta numa fria. Só queremos tomate, ovos, tarifa de ônibus, óleo de soja, detergente, papel higiênico e essas coisas de primeira necessidade mais baratos. Caro já pagamos pela nossa dignidade. A ética não tem preço, mas só a gente usa dela. Esses enfileiradores nos camarotes só falam dela.

É verde e amarelo e Rio com samba cantado no idioma Brazil. Nem queira saber de quanto é a comissão de fulano no valor da obra para as próximas olimpíadas. O nosso custo é quase zero: uns preguinhos aqui e umas rasteladas ali para acertar as pistas. O custo dos estádios e das outras praças esportivas, advinha: tirando vinte por cento para um, vinte para outro, vinte para o terceiro e vinte para o quarto o gigante erguido vale o restante vinte por cento.

Então se prepare. Amarra a calça de moletom com barbante. Correr levantando as calças não dá rendimento. As nossas olimpíadas são outras, o nosso percurso é atrás da vida.


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Crônica - As luzes de agora

Clareza! Fuço as ferramentas de busca da internet e acesso: há 131 anos fez-se a luz numa noite do dia 10 de agosto, no Parque de Exposições da 1ª Feira Internacional de Eletricidade, em Paris, França. Corria o ano de 1881, dois após Thomas Edison ter inventado a lâmpada elétrica incandescente, em 1879. O que aconteceu naquele momento e naquela data foi o acendimento simultâneo de milhares de lâmpadas. Pela primeira vez. E a noite virou dia.

Surpresa denunciada nos rostos das pessoas presentes. Encantamento e exclamações: “Ô! Há! Ui! Oui! Beauté! Cruz credo! Vixe! Pai todo poderoso! PQP!” Enfim reações diversas: “Chuta na minha canela para ver se é verdade!” Claro, dito em francês e com jeito de francês falar.

E nem se cogitava achar a luz do fim do túnel naquela tempo aqui no Brasil. Pois Delfin Neto não era ministro da Fazenda. Guido Mantega nem espermatozóide era. Lula veio muito depois e Fernando Henrique Cardoso ainda não se olhava no espelho para conversar consigo mesmo. Mensalão? O pessoal daquele tempo nem idéia tinha do que era isso.

Coligação partidária? Alguns pensadores polícos da época até pensavam na possibilidade. Mas de um outro jeito e com outro nome. Afinal de contas, a ideologia do passado era tão prática quanto discurso. Ao contrário de agora: teoria ignorada, prática escandalosa.

Assim se imagina que a luz daquele tempo servia para clarear. De pequeno a grande ambientes. Aliás, as luzes do parque de exposições de Paris flagraram namorados com as mãos em locais indevidos. Sim, naquele tempo já se namorava tanto quanto agora, embora os figurinos épicos, conforme vemos nos filmes, dificultassem muito os acessos. Era uma trabalheira chegar lá!

Supõe-se que clareando os ambientes as luzes de Paris também iluminavam circunstâncias. Ou seja, na claridade nada de exageros e ninguém mete a mão no que é alheio. Políticos, por exemplo, podiam se mirar olho no olho. E quem não tivesse como encarar desse modo quem estava diante de si fatalmente fugia da luz. Escondia-se nos cantos escuros para maquinar maldades e planejar trapaças e traições.

Diferente de agora. Hoje usam os bastidores iluminados para corromper, usufruir, tapear, desfalcar, apropriar e enriquecer ilicitamente. Grandes bandidos usam hoje em dia a claridade para negociar desvios, contar seus dólares, assinar projetos de obras que nunca são executados e enfins, tanto quanto os afins. Grandes bandidos, hoje em dia, fogem do escuro. Pois temem traições de outros bandidos que usam os cantos obscuros para chantagear e se preciso trair.

A luz de outrara era pura! Era claridade em todos os sentidos. A luz de agora não recua os maldosos. Culpa da luz? Absolutamente. Culpa do homem.


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Crônica - A mosca da sopa eleitoral de Londrina

O passado está presente nas seis opções. Experimente: jogue os candidatos a prefeito de Londrina e suas coligações no cadinho. Nada a ver com aquele personagem ridículo da novela das nove. Ou oito e meia? Depende. Se tiver jogo é mais cedo. Caso contrário estica-se para tão tarde que dá sono.

Então? O cadinho onde colocamos os nossos candidatos é aquele usado para fundir o ouro e dar um formato ao metal precioso. Anéis, brincos, pingentes e antigamente coroas, pivôs e restaurações dentárias. Imagine se hoje em dia os dentistas e seus protéticos usassem ouro na boca dos pacientes? Teria gente desdentada em cada esquina após ações dos surrupiadores. Sim, certos políticos incluídos.

O cadinho é uma peça pequena, mas todos cabem nele se juntos levarem apenas as suas propostas. Mas é preciso centrifugar o conjunto: além das propostas, as feridas, as cuecas com dólares, as maldades e enfim o passado. E todos devem. Senão por eles próprios pelos seus apoiadores.

Recorremos ao processo convencional de trabalhar o ouro. Esculpe-se a peça que queremos produzir em cera. Isso é um trabalho de artista. A cera esculpida é vazada com material apropriado, uma espécie de cimento ou gesso. Após a secagem da pasta coloca-se o vazado num forno para que a cera seja derretida.
Feito isso coloca-se a massa seca com a cera derretida no centrifugador que também acolhe o cadinho. 

Neste último coloca-se o ouro, que é derretido com um maçarico. Nesse ponto dispara-se o centrifugador, que ao girar envia o ouro derretido para a massa. Este, por sua vez, tem o espaço vazio da cera derretida ocupada pelo ouro.

Pronto. Um banho de água fria desfaz a massa. E surge o metal, já no formato da peça esculpida, faltando somente desbastar, alisar e polir. Dá um brilho apaixonante.

Pedimos ao nosso escultor que moldasse em cera um coração que representasse Londrina. Ele produziu uma peça maciça, um coração com formato do verdadeiro, este que bate e nos dá a vida. Justificou que a sua arte simbolizava realmente esta cidade apaixonante. Retrucamos que vai muito ouro. Ele venceu na tréplica: a cidade merece.

E colocamos no nosso cadinho os seis candidatos a prefeito e suas coligações. Imaginamos que havia excesso, mas já que teríamos só o ouro derretido pelo menos um coração surgiria da centrífuga.

Expectativa, tensão, emoção, erros, acertos, adiamentos, cassações, segundo turno, terceiro turno e muitos programas eleitorais gratuitos depois acendemos o maçarico. Quando a centrífuga foi disparada fez um barulho assustador. Corremos com a peça até a torneira para derreter a massa e conferir o resultado.

Nada. Na pia com o ralo tapado só apareceram uns montes com formato de cocô. Na verdade, seis montes. Moles, melequentes, nojentos. Será que o nosso escultor em cera nos enganou? Ou ele foi tão fiel que a centrífuga, cuja função é de espirrar através da rotação em alta velocidade, espirocou?

O problema é que nem as alianças de alguns deles, após derretidas, deram em algo. Então concluímos que alianças maldosas somente solidificam para as maldades. E o povo não merece isso. E o que é que o cadinho e a centrífuga tem a ver com a sopa e a mosca eleitoral de Londrina? Tem cocô e um forte mal cheiro. 


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Crônica - A sopa que afoga a mosca

Via de mão dupla! Vai e volta, bate e rebate. Injusto pensar o mundo com um olho só, seja esquerdo ou direito. Até já se cantou do pentelho que escapa sorrateiramente das roupas íntimas e se mostra escandaloso no meio da sala, sobre o piso cor de marfim, sem que ninguém possa pisá-lo para puxar e esconder sob o sofá. Diante dos olhares matreiros e enojados das visitas, aquilo fica exposto, encarapinhado e denunciador, além de desafiar e ironizar quem o perdeu. Como se perguntasse, rindo: “Quer enganar, é? Vai dizer para as visitas que sou um cabelo seu que escapou do alisamento e foi banido do grupo dos esticados?”

Vejam que a situação é tão constrangedora quanto o que foi cantado: a mosca que pousa na sopa. E isso não é exclusividade de Seixas, o Raul. Essa mosca é antiga. Já entrou em crônicas, contos, romances, filmes e peças teatrais tanto quanto é freqüente no cotidiano de milhões de pessoas no mundo. Não só nos restaurantes e nas salas de jantar. A mosca entra na sopa em diferentes locais e situações. 

No namoro a mosca na sopa é o pai da moça entrando na sala justo no instante em que o rapaz tenta roubar um beijo ousado, com lábios nos lábios e mãos em outro lugar. Para esse mesmo pai, a mosca na sopa é ele entrar na cozinha e soltar um pum sem perceber que a filha e o namorado estão atrás. Esse mesmo casal protagonizará outra cena de mosca na sopa ao flagrar a mãe dela, que está fazendo regime e academia para perder peso, botando na boca uma colherada de sorvete roubado do congelador. Aliás, nesse caso são duas moscas: a do sorvete devorado e a do uso da colher que levou à boca para pegar o sorvete do pote tamanho família.

Vejamos como seria inverter esses eventos. E se a mãe justificasse que é só um tiquinho de sorvete e que a boca dela não tem sapinho? Poderíamos dizer que ela está afogando a mosca com a sua sopa? E se o pai dissesse que foi só um punzinho bem seco? Isso equivaleria a usar a sopa para afogar a mosca? E se o namorado explicasse ao pai da moça que quando a beijou a mão ficou mole e caiu bem ali? Estaria o namorado entornando a sua sopa na mosca?

É complicado chegar ao sim ou ao não. No caso do namorado se explicando ao futuro sogro, por exemplo, corre o risco da mosca, mesmo banhada com sopa quente, voar e logo em seguida pousar em outro caldo. O punzinho seco não justifica nada. Fica-se a nojenta impressão da bitola desregulada. Quanto à mãe, o sorvete e a colher, mesmo que não haja sapinho sobra a realidade cruel: gorda, gulosa e nojenta.

Quanto ao pentelho somente persistiria a forçada concordância e compreensão se a visita fosse íntima. Mais ou menos assim: “Desculpe amor. Olha o que caiu quando tirei a roupa...” E ela responderia, sem nenhuma convicção: “Isso acontece...” Assim, concluímos que a mosca continua a vilã pentelha da história.


terça-feira, 7 de agosto de 2012

Crônica - boa noite camaradas...

Cem reais? Pagariam isso pela minha cama numa loja de usados? Dúvidas que eu tenho e me dou ao direito de transformar em perguntas. Ao longo da profissão tantos já me disseram: nunca comece um texto com perguntas. Mas é necessidade e provo no decorrer que faz parte do que manifesto.

Passa da meia noite e me aconchego no afundado feito pelo tempo no colchão, ao lado de minha companheira de 31 anos. Penso comigo mesmo que há conforto, apesar da modéstia. O madeiramento da cama é simples, mas está firme. O colchão é de espuma e me acomoda feito um abraço em suas imperfeições. O travesseiro, comprado há meses num supermercado, acolhe a minha cabeça do jeito que eu preciso: se mais alto, pressiono-o nos cantos; se mais baixo, acerto-o com palmada sutil e delicada.

Dariam pela minha cama setenta reais. Diriam que ganhariam apenas uns vinte na revenda. Quanto ao colchão alegariam que nem uma entidade filantrópica teria interesse nele. Por que eu os trocaria se eles me acalentam? Só para me dar ao luxo de dormir num conjunto de mil reais?

Pois quando me acocoro no afundado do colchão descartável sobre a cama de setenta reais não me preocupo com a possibilidade de uma noite de insônia. E realmente. Bastam alguns poucos minutos que nem noção tenho quantos. Durmo e só deixo o sono de manhã naquele instante do despertar de susto, por medo de perder a hora. É quando o corpo quer permanecer deitado e a inconsciência pede para fechar os olhos, dormir, sonhar. Mas o consciente, rigoroso, joga a coberta para longe e te levanta.

Tenho um dia de trabalho pela frente. Desafios a serem vencidos, provocações a serem enfrentadas, coisas boas e ruins, expectativas alinhadas, pretensões, vontade, criatividade e esforço. Tudo isso faz parte. Resolvendo cada questão solidifico para mim mesmo que sou justo a quem paga pela minha produção. Mesmo que atolado na trincheira do equívoco o empregador não meça o meu esforço, sei da minha capacidade e da minha importância. Até por isso eu durmo tranqüilo.

Ontem eu vi vocês, acusados de roubar, enganar, prevalecer, tapear, sacanear e usufruir do que não lhes pertence. Eu os vi nas cadeiras dos réus. Pareciam confortáveis abaixo das luzes dos holofotes, como se nenhuma das acusações fosse cabida. Quanto levaram? O que compraram com o dinheiro que levaram? O que responderam aos seus filhos quando estes lhes perguntaram: “É verdade, pai? É verdade, mãe?”

Então? Deitam-se numa cama de setenta reais com um colchão afundado pelo tempo? Ou compartilham com seus cônjuges dormitórios que não saem por menos de vinte mil? E dormem justamente, sem necessidade de água constante para beber e vaso sanitário freqüente para esvaziar?

Eu durmo. Um sono profundo, intenso, satisfatório e provocativo a quem tem insônia. Tão rápido eu adormeço que nem me sobra tempo de lembrá-los, senão diante da corte, mas expostos como se nus aos que foram lesados, para lhes desejar, mesmo no minúsculo e sem exclamação: boa noite camarada lula; boa noite camarada josé dirceu; boa noite camarada josé genuíno; boa noite, enfim, camaradas réus. Eu vou dormir e meus anjos hão de me acordar quando acharem que o sono que me proporcionam é o bastante.



segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Conto - Presente de agosto

Deu para ajuntar uns dez reais, pouco menos, talvez mais. Diferença pouca tanto acima quanto abaixo. O que comprar com o dinheiro, este é o dilema. Há tempos ele anda cabisbaixo. Mesmo quando sorri e tenta ser carinhoso com as crianças o que seu rosto expressa mostra uma tristeza que machuca quem vê e lê nos olhos daquele que está em frente uma mistura nada boa: amargura, revolta, angústia, decepção, dor, desânimo e nenhuma esperança. O que, disso tudo, faz um homem andar com o rosto virado para o chão? Tudo.

Pudera eu ser grande. Fosse assim bem que eu poderia fazê-lo caminhar olhando adiante, por mais longe que fosse. Alguém um dia disse que enxergar a linha do horizonte é possibilidade de acompanhá-la após a descida que a bola do mundo faz. Feito isso basta seguir. Há de chegar o momento em que se pergunta: tantos declives para onde? E num determinado estágio se conclui que cá para quem olha de longe o horizonte é descida. Mas ao atingir aquele ponto, do local onde se está o que se apresenta é subida.

Eu o acompanharia nessa viagem. Por minutos, horas, dias, semanas, meses, anos e décadas, seria parceiro mesmo que preso a um silêncio por causa do medo de nada encontrar no lugar e no tempo para onde se vai. O temor é, queiram ou não, acompanhante que se leva e se traz de volta na hipótese do que for achado estar aquém do justo e do merecido. Como é que se avalia o justo. O que é merecido?

Nem capacidade para medir essas coisas eu tenho. Quanto mais sair. Deixar o porto seguro e se embrenhar nessa selva de cimento, vidro, aço e plástico é aventura. Principalmente porque nunca se traça uma reta, o caminho são ruas e avenidas, vielas e descampados, contornos e desvios. Seria isso a incerteza de quem pretende sair do lugar? Parece que sim.

Papai perdeu o emprego. Após o desespero de mamãe e dos filhos mais velhos ouvi ela atenuar, com forçado conformismo, que outra vaga se abrirá. Essa cena se repete há oito meses. Desespero, tudo se ajeita, apoio e um desfecho: Deus vê tudo e o emprego virá de novo. Quando? Então completam que mais cedo do que se espera, embora o tempo de Deus seja diferente do nosso. Papai faz bicos por enquanto. Tenta vender assinatura de telefone, televisão, revistas e o que mais as suas condições permitem.

Sai todos os dias muito cedo. Eu o vejo da janela, indo. Tenho impressão que está entregue ao destino. Vai a pé, com a pesada maleta cheia de contrato que demoram a ser preenchidos e assinados fazendo-o vergar para os lados. Ontem ouvi alguém perguntando o que ele queria ganhar de presente no Dia dos Pais. Ele respondeu que a força que lhe dão é o bastante. Nada mais disse.

Sábado acompanhei papai e mamãe nas compras do supermercado. Antes ele era quem fazia os pagamentos. Agora é ela. Sei que não é por orgulho ou qualquer outro sentimento esnobe de macho, mas percebo que papai gostaria muito de ser o responsável pelo pagamento da nossa comida e dos produtos básicos de casa. Como era no passado, quando mamãe, com o seu salário, corria ao centro para comprar as nossas roupas e os nossos calçados.

Então decidi que os dez reais que eu tenho não serão gastos num pacote de meias ou cuecas. À noite, enquanto ele cochila no sofá da sala, sorrateiro vou ao quarto e coloco o que tenho na carteira dele. Mesmo que ele gaste esse dinheiro para me comprar chocolate. Esse é o meu tempo e o meu ato. É o meu presente. Feliz Dia dos Pais, Dona Dilma!


sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Crônica - A minha mais-valia é trapalhona

Licença! Tomo por empréstimo o termo usado por Karl Marx para definir a diferença entre o valor da mercadoria produzida e a soma do valor dos meios de produção e do trabalho: mais-valia! Complicado não? Valor da mercadoria menos o custo de produção e do trabalho. Seria isso? Enfim, se é a diferença entre o que custou para ser produzido e o valor de venda, a mais-valia seria o lucro. Se não me engano...

Caso haja equívoco, perdoem. Só empresto o termo, dispenso o conceito. A mais-valia que empresto de Marx é mais chão de fábrica pisado com botinão. E para isso imponho uma definição que é minha, sem o constrangimento de ser rebatido. O conceito é meu e reparto-o com aqueles que o analisarem como válido. É a antidemocracia na comunicação, sei muito bem. Mas quando me deram ouvidos se fui democrático?

Esta semana troquei as luminárias do pátio do meu condomínio, onde moram 28 famílias. Economizei aos moradores cerca de R$ 250,00 que seriam rateados. Fiz isso porque conheço de eletricidade, tenho ferramentas e qualquer cinco reais economizados na cota condominial me aliviam.

Mas se daqui a três meses algumas dessas luminárias apresentar defeito de fábrica ou por culpa de intempéries da natureza, dentre as 28 famílias haverá quem diga que o erro foi de instalação. E sabem por que? Porque nessas pessoas vigora o pré-conceito e o preconceito baseados no valor do produto e do serviço: quanto mais caro melhor.

Se o custo da troca de luminárias fosse os R$ 250,00 e o problema ocorresse nos mesmos três meses, haveria quem dissesse que o contratado cobrou barato e fez serviço de porco. Se o serviço custasse R$ 1.000,00 então diriam que o problema foi de outra origem: material fraco, desgaste, condições climáticas e afins.

Então a mais-valia a que eu me refero nada tem a ver com o conceito incontestável do Marx. A mais-valia da forma como a defino é um alerta: esmola, como o bolsa-família, gera um vício que acaba em uma bola gigante empurrada por pessoas que não se beneficiam dela para sustentar aqueles que se acostumam a ela.

E numa relação adequada da mais-valia de Marx quem produz não tem amigos ou parentes. O seu preço ou o de sua mercadoria é igual para o vizinho, o irmão, o cunhado, a tia, a enteada da namorada, o agregado do sogro e assim vai. Na mais-valia que defino tudo é de graça. E de graça a gente colhe os desaforos dos que ficam descontentes com o nosso serviço.

Tenho prestado favores até na minha profissão, a comunicação. Quando o meu favor resulta em um bom trabalho a contrapartida é o silêncio e o desprezo. Quando o resultado é ruim logo dizem que foi o fulano quem fez. Então a minha mais-valia, essa que não custa nada, sou obrigado a admitir que é coisa de bundão. Perdoe-me Marx! Você sempre teve razão!


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Conto - Mala vazia, bagagem pesada

Nem uma mala cheia, pouca coisa deve ser levada. Bastam alguns pares de calçados e calças, peças íntimas suficientes e blusas leves para enfrentar o calor. A viagem é de projetos, o lazer será uma possibilidade adiável. Fotografias digitais deletadas, e-mails desativados, decepções, tristeza, lágrimas e desilusão, tudo isso é descartável na partida. Impossível, porém, desvencilhar-se deles. São coisas que lotam caminhões. Imensos e invisíveis, pesam na bagagem, arqueiam os ombros e envergam a coluna. Ao persistir com a carga, quem a carrega vai ao chão.
Rastejar. É assim que se pode ir. Como puxar o corpo com os braços, concentrando toda a força nas mãos qualquer que seja o tipo do piso onde se vai: liso, de pedregulhos, em concreto ou de puro barro. Na subida e na descida, assim como no plano, faz-se muito mais do que o preciso para sair do lugar. O percurso é perigoso quando se anda assim. Desconhece-se o que há após a curva, mas esquenta o temor sobre o que virá.
Quarenta e um anos, deveria se o tempo justo de viver. Nem Ligia sabe do que está fugindo. Se o destino que ela busca trará alívio, se haverá retorno, se chove ou faz sol onde ela quer ir. Não é um lugar o que ela busca. É um estado de espírito. Pouco importa as condições geográficas, o clima, a qualidade de vida e a cultura. Se houver mar que ele seja calmo. E os rios sejam transponíveis, as ladeiras um tanto suaves, as casas confortáveis e as pessoas amáveis.
A viagem é, afinal, de projetos. O que fazer, como fazer, quando fazer, com quem fazer. Ligia saiu de um casamento que foi bom enquanto durou. Dos onze anos em que viveu junto, sentiu-se só em pouco menos da metade. Foi uma solidão a dois, sem diálogo, parceria e nexo. Quando muito vigorou a piedade de ambos os lados um para com o outro. Mas sem um pingo de solidariedade e muito menos respeito. Piedade, de ter pena do sofrimento do outro. Uma espécie de dó desaforada e irônica coberta com o silêncio, pois se houvesse a necessidade de pronúncia sairia provocativa: coitada ou coitado, nada mais.
Casar de novo? Nem por engano. Retomar os estudos? Jamais. Só restava trabalhar. E a alternativa ficava longe, onde uma sala alugada mobiliada com um divã daria um bom consultório de psicologia. Ouvir os problemas dos outros para esquecer os próprios, assim imaginou Ligia. No entanto, o próprio percurso até lá adiante, onde o futuro com cheiro de novo parecia estar presente, mostrava que a mala até a metade era pouca diante da bagagem de dor, revolta e angústia que ela puxava, rastejando, puxando o corpo com as mãos. E como ajudar outras pessoas a se libertarem de seus pesos se nem o dela Ligia conseguia aliviar?


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Conto - Hora do almoço

A lata com tampa, embalagem de um relógio comprado anos atrás, está quieta. Nem pesa e tampouco se ouve tilintar ao balançá-la. Vazia, espera por moedas que antes chegavam à boca e vez ou outra, de tão cheia, dificultava o fechamento.

O conteúdo era útil para as tarifas do ônibus. Levava-se o valor trocado, enchendo os bolsos traseiros, para evitar demora na passagem pela roleta da lotação. Sim, lotado. O meio de transporte era um empurra de lá e cá, pisão nos pés, roça aqui e mãos disputando os pingentes.

A latinha enchia depressa. Na volta do supermercado e no caixa das lanchonetes as moedas, bem-vindas, sempre abasteciam a vasilha com seus tamanhos e valores diferentes. Havia a ilusão de manter o cofre lacrado. E providenciar outra latinha para enchê-la e lacrá-la, além de outra e mais outras. Quanto se ajuntaria e o que poderia ser comprado? Mas nunca o moedeiro passou de uma única lata tampada sobre o mais alto degrau da estante da sala.

Se foi difícil no passado agora pior ainda. Manoel está desempregado. A carteira de trabalho tem a assinatura de uns quatro empregadores. Em três o período de permanência foi curto. Em um foram vinte e sete anos. Na soma, Manoel trabalha com carteira assinada há 33 anos. Faltam dois para a aposentadoria por tempo de serviço.

Manoel está parado há oito meses. Nem biscates naquilo que entende aparecem. Manoel é contador de curso técnico. Tentou mudar para a área de vendas e saiu por alguns dias com a pasta cheia de planos de assinaturas de telefonia. Apesar da vontade de vender e se dar bem, em três semanas retornou à empresa que o contratou, sem salário fixo, com a porcentagem da comissão ainda no zero.

Foram muitas passagens de ônibus nesse período. E as moedas que mais saiam do que entravam foram deixando a latinha vazia, sem peso e sem barulho. Tão rápido quanto os níqueis, o dinheiro da rescisão trabalhista vai reduzindo os números da conta bancária. O fundo de garantia está separado. Manoel faz de conta que ele não existe. Senão bate a tentação de uma compra desnecessária. De um carro, por exemplo. Para que carro agora? Se encontrar um novo emprego Manoel se dá ao luxo de ter um. Caso contrário, fica na poupança para cobrir eventualidades. Como a de um desemprego ainda mais duradouro.

As moedas também serviram para alguns cafés. Nem todos os dias desse período de salário zero foram de almoços e jantas. O pão com leite sustenta enquanto as vagas estão fechadas. Quem contrataria um contador de formação técnica com quase três décadas de experiência e cinqüenta e quatro anos de idade? Até a nova tecnologia Manoel assimilou no momento que ela veio:computador, internet, recolhimento eletrônico, planilhas, banco de dados e teclados muito mais leves do que os das antigas olivetes. Claro, não é assim que se escreve, mas é deste modo que se fala: olivetes.

Mais um café com leite e pão e manteiga para o almoço. Manoel tem medo de diminuir o saldo da conta. A latinha está vazia. Ninguém telefona para agendar uma entrevista de emprego. Não há mais para onde enviar currículo. Cinqüenta e quatro anos! O mercado de trabalho prefere os de dezoito, vinte ou pouco mais. Manoel prossegue o dia sem almoço. Quem sabe amanhã se comemore com um novo emprego.