quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Crônica - Conversa franca na frente do espelho

A pergunta veio na lata, sem dó e nem piedade:

- Então, o que você fez de bom em 2011? Faz um balanço mas sem muito critério.

- Hummmm... tantas coisas. Bom em que sentido?

- Sei lá. São tantas e não consegue dizer? O que há?

- Não é isso. Bom para mim ou para outras pessoas?

- Ah, não enrola. Começa com o que fez de bom para si próprio.

- Troquei de carro e aceitei a pendência com o financiamento habitacional. Deixei tudo redondo.

- E fora o material? Aquelas outras pendências complicadas, como é que ficaram?

- Vixe! Nem me fale. Ficaram mais complicadas ainda. Ali deixo tudo em aberto. Nem aceno de solução aprontei.

- É! Então de alma está devendo e muito. Nenhuma chance de acerto nestas horas finais de 2011?

- Que nada. Evito até pensar. No começo de 2012 dou um jeito.

- E vejo que não cumpriu a promessa de parar de fumar este ano...

- Mas tentei. Na imagina quanto. Até troquei a marca do cigarro para ajudar. Passei a comprar um mais barato e forte. Assim vou diminuindo aos poucos.

- Igualzinho o que eu fiz. Mas não resolve. Acostuma com o mais forte e ruim e fica nisso. Não adianta. Nisso estamos empatados.

- Verdade. Se tivéssemos feito aquela aposta ninguém devia para ninguém. Ou ambos estaríamos devendo um para o outro.

- É! Uma dívida pesada.

- No começo do ano a gente tenta juntos. Um incentivando o outro é mais fácil. Mas é sério mesmo. Controlar cigarro quando juntos e fumar escondido é sacanagem.

- Mais que isso. É traição, né? Igual infidelidade conjugal. E sabe que é fácil viciar na mentira, né? Mole, mole. Mente um pouco hoje, mais um tanto amanhã e vai de acostumando...

- Então definimos agora: dia 2 de janeiro. Que tal?

- Mais para frente. Na segunda semana de janeiro é melhor porque a ressaca da virada do ano já foi embora.

- Mas logo chega o carnaval. E daí? Como é que fica? Carnaval é período brabo.

- Eu não ligo muito. É a mesma coisa. Para mim ta valendo janeiro e pronto. Se tem que parar de fumar, que seja depois das festas da virada.

- A gente conversa na época e define.

- Ah, também voltei à igreja em 2011. Mas consciente, sem carolice. Maduro. Vou porque quero, sem pressão de mulher, vizinho ou o que valha. Vou e não entro nas conversas do padre e dos carolas. Vou por mim e tenho o meu diálogo silencioso.

- Isso é bom. Grande feito. Principalmente se não é por obrigação. Eu ainda estou refletindo. Mas estou pendendo de voltar. Também por conta e sem aparas. Quero ir comigo mesmo.

- Claro, vale a pena. Eu, por exemplo, me concentro nas minhas reflexões quando começam a falar bobagens. E me esforço tanto que consigo definir muito bem em que eu tenho fé. E confesso: a igreja ainda me traz muitas dúvidas.

- Que coisa, não? Parece uma amarração. Os caras impõem até o modelo de fé que você tem que ter.

- Nem falo. Tenho sentido isso, mesmo com vontade de ser neutro. Mas agora continuo e vou crescendo comigo mesmo. Decidi assim.

- E mais, o que você fez? No estudo, no trabalho, na comunidade?

- No trabalho tentei grandes projetos. No fim acabei concluindo que o melhor é fazer o que deve ser feito.

- Igual. Engavetei um monte de coisas para evitar problemas. Toquei em frente naquilo que é obrigação.

- E nisso não tenho do que me envergonhar, cara. Trabalhei muito. Mas no trivial. Agora, nos estudo, estanquei. Pretendia, mas analisei que já estou velho para teorias. Nem especialização e nem mestrado.

- E aquele sonho de aulas? Detonou?

- Deixei passar. E na comunidade tentei. Mas me intimidei quando vi que em certos lugares, se não tiver interesse político, o sistema te engole. Então me limitei ao condomínio. Lá fiz algumas coisinhas. Sabe que pela primeira vez desde que o prédio foi entregue, há quase 20 anos, conseguimos fazer uma confraternização de fim de ano?

- Isso é grande, cara! Grande mesmo! Eu nunca conversei com o meu vizinho da frente.

- Então. Enfim, não fiz quase nada. Tentei muito mas fui serviçal. As coisas mais de idéias não aconteceram.

- É! Então somos a mesma pessoa. Percebo ai certa frustração. Então saia da frente do espelho. Não foi tão ruim assim. Mas sendo o seu reflexo nada posso fazer para melhorar.

- Certo. Nos veremos. Tenho ainda muitos dentes para escovar, barbas para aparar, cabelos para pentear até a virada do ano. E, na verdade, só tenho você ai do outro lado do espelho para conversar.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Conto - Por trás das dores que só ela sente

Corações apertados arrancam lágrimas, disso ela sabia. Ela, que muitos diziam ser uma pessoa durona: “Fulana não tem um pingo de sentimento. Nunca se emociona”.

Equívoco. Ninguém, diante de uma pessoa que se mantinha impassiva quando cercada por outras, imaginaria que ali se postava alguém muito frágil. Por culpa de acontecimentos, tantos, que deixaram feridas.
Houve um tempo em que ela tentou suavizar as dores recorrendo a familiares, parentes e amigos. As lágrimas eram muitas e ela própria percebeu que incomodava os outros. Tinha a impressão de ser ouvida com desdém: “Lá vem ela de novo com a choradeira...”

Foi então se fechar. Criou em torno de si um muro transparente. Evitou aproximações dos mais chegados. Assumiu sozinha as torturas da dor. Trancou-se com uma corrente grossa e pesada fechada com um cadeado que nem ela sabia onde havia jogado a chave.

Ela também emudeceu. Suas conversas ficaram restritas aos assuntos profissionais. Fora do ambiente de trabalho nenhuma conversa. O rosto se punha sempre com uma expressão de quem vê apenas a si própria. Nunca um sorriso.

Mal sabiam os que a haviam praticamente todos os dias que nas madrugadas, sob a luz fraca de um abajur, aquela mulher estava viva. E como qualquer ser que tem o sangue pulsando nas veias, também sentia. E ela chorava por feridas que não conseguia cicatrizar.

Foi uns dias antes do Natal que ela encontrou ele. Justo ele, que havia sido a causa. Ele veio de longe. Viajou quilômetros e chegou humilde, nunca como antes. Não disse nada. Apenas apertou-a num abraço forte e demorado. E ela chorou diante de pessoas que nunca haviam percebido algum sentimento nela.
E então ousaram dizer: “Viram? Por homem ela chora! Só assim ela fica fraquinha...”

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Crônica - Sem peru o porco é desprezado

Anita dispensou o peru e o procedimento natalino nada teve a ver com economia doméstica. Foi uma decisão familiar após alguns debates por dias seguidos às vésperas do grande dia.

Euzébio, o marido, até que dispensava objeção. Conformista, durante a quentura das discussões saia-se sempre com a resposta mais conveniente do momento, de forma a evitar constrangimento com qualquer das partes envolvidas: “Ah, faz qualquer coisa. Tudo é bom, desde que tenha também um assado de porco”.

Caio, o filho mais velho, radicalizou: “Aquela coisona depenada, com um apito não sei onde, tem gosto de isopor. Não acho graça nem trocando o recheio gosmento por bacon e azeitona. Pode descartar. Se é pra ter carne branca prefiro frango”.

Então Kauany, a do meio, emendava: “Frango só se for um assado de coxa e sobrecoxa. Porque frango assado inteiro é um peruzinho com o mesmo recheio gosmento e também tem gosto de plástico. Nem frango e nem peru. Se for isso eu frito ovo para mim”.

E o mais novo, Júnior, ainda na adolescência titubeava. Na verdade usava de cautela e analisava a posição de cada um: a mãe, por tradição, preferia peru; o pai não estava nem ai; o irmão mais velho não queria isopor na mesa; a irmã recusava plástico e preferia ovo. E ele? Grande dilema.

É sabido que Júnior, se pudesse escolher, faria uma lista com três preferências em ordem de prioridade: cheese baicon e egg em primeiro, cheese baicon  em segundo e cheese egg em terceiro. Para acompanhar, muita coca cola. Ciente de que seria não somente derrotado, mas principalmente condenado diante daquele público enfurecido durante o debate do almoço de Natal, Júnior tentava ganhar tempo: “E se a mãe retemperar o peru?”

Claro, tiros de canhão. A sugestão era rechaçada e nem merecia defesa. “E se fizer frango a passarinho?” Que nada, todos achavam que este tipo de prato era muito vulgar para um almoço de Natal. De repente, num vacilo, Júnior disse por dizer: “E se assar um porcão inteiro com uma maça na boca?”

Pronto! A sugestão estava dada. E o suíno ocupou a parte central da mesa forrada com uma toalha cor de laranja. Numa das pontas o rabinho enrolado lembrava alguma coisa que não era comida. Na outra, a cabeça do coitado, estorricada, afastava a fome.

Comeram arroz, maionese, salada de pepino e tomate, jiló com massa de tomate, panetone, pão com manteiga, biscoito água e sal. Sobrou um porco quase inteiro.

E Anita se lamentava: “Se fosse peru todo mundo tinha ao menos dado uma mordidinha...”

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Conto - O assado esfria e o vinho esquenta

Uma taça de vinho sem marca de baton sustenta-se no parapeito da janela de um apartamento do penúltimo andar. O prédio é alto e lá de baixo confunde quem tenta contar quantos pavimentos sobem até onde a mulher espia o que acontece lá fora entre um gole e outro da bebida.

Há pessoas na rua. De cima elas são pequenas. E o trânsito nem em dia de festa é menor. Carros, motocicletas, roncos e buzinas atrapalham a audição. Difícil saber que música o cantor contratado pelo restaurante interpreta.

Quem dançaria no meio da multidão altas horas da noite, entre estouros de rojões e sirenes das viaturas dos bombeiros abrindo a rua para mais um socorro? É uma adolescente, aparenta menos de dezoito. Selena não seria capaz, a não ser que estivesse embriagada e muito.

E foi tão pouco vinho naquele copo. Selena está sóbria. Aliás, muito mais do que isso. Selena está viúva há três anos e prefere ficar sozinha no apartamento. Ela preparou uma ceia. Esperava receber a visita do filho e da nora para compartilhar com eles um assado acompanhado de boa salada.

Coisa simples. A sobremesa com um preparado de sorvete se encarregaria de manter o clima enquanto lembranças boas seriam enumeradas. Só lembranças boas, nada de assuntos pendentes. A intenção era de levantar ânimos. O de Selena carecia muito de uma alavanca para subir. O filho e a nora, apesar de uma relação fria com a viúva, eram os parentes mais próximos.

Para ambos Selena gastou horas escolhendo presentes. Há tempos ela não fazia isso. Ia às lojas para as compras necessárias e se incomodava nos provadores. Tratava de se medir com os olhos e comprar roupas que supunha caber. Por isso Selena usava blusas e calças acima do seu manequim.

Não fosse isso, Selena seria quase uma moça. Rosto delicada e sem maquiagem, magra, estatura média e cabelos, estes sim, sempre alinhados, davam a ela uma beleza natural invejável. Na repartição, Selena destacava-se entre colegas mais jovens e produzidas.

O que faltava nela era brilho. Quarenta e oito anos de idade vividos como alguém que está beirando os noventa. A causa foi a viuvez precoce num casamento de um único filho. E o filho escolheu o seu destino.
Mas era Natal, quem sabe ele viria. A ceia está pronta, as pessoas festejam lá fora, o vinho desce muito devagar. E nada que faça Selena se embriagar de alegria.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Crônica - Se beijo fosse presente eu estava feito

Se eu te der apenas um beijo você vai entender que foi uma manifestação de amor. Não há presente num ato que reflete um sentimento. Há a contrapartida para a necessidade de demonstrar o amor. E o beijo cumpre o papel de consolidar o que não se apalpa e nem se vê. O beijo é um toque especial demais e se bem dado é muito melhor recebido. Faz o calor aumentar, provoca arrepios e estimula outras coisas que pedem mais beijos, mais toques, mais tempo para beijar e querer devorar pela boca.

Então por que o beijo não é um presente de Natal? Os sábios responderão da maneira mais simples que é por não ter um valor material. Beijo não se compra com um cartão de crédito em 12 parcelas sem juros. Com certeza, pois estamos falando do beijo, e não da beijoqueira retribuída com má vontade em troca de alguma importância. O presente é mais físico do que a cadeira de metal ou madeira. Presente tem que ser pego, pisado, vestido, calçado, montado, colocado no pulso ou pendurado no pescoço.

Quanto melhor a renda, mais caro é o presente. Quem não gostaria de ganhar um carro? E vem o pai com o contrato de um curso assinado e diz à filha: este é o seu presente de Natal, um ano de faculdade pago. Apostem, não vai agradar quem esperava um notebook de última geração. E se fosse esse o presente, com certeza a presenteada devolveria com um abraço e um beijo. Mas a faculdade quitada por 12 meses vai, no máximo, desencadear um muito obrigado sem graça.

Então? O beijo eu tenho para você. Ainda não comprei o presente. Fiz e refiz as contas, estou rigoroso na administração da sobra do décimo terceiro. Tire o olho daquele tablet. Nem pensar. Mais um anel? Vai usar em que dedo? Brinco só se for da promoção. Quer um par de meias? Tem um pacote de meia dúzia de calcinha por nove e noventa. Cores variadas. Modelo discreto. Ou pode ser uma blusinha de verão?

Pela sua reação eu vejo que nem físico e nem sentimental. Guardo o dinheiro e recolho a vontade de beijar. Nesta boquinha ai eu não tenho retorno. Vou indo.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Opinião - Um lance de otimismo pouco exagerado

A luz do fim do túnel é opaca. Clareia, mas não o suficiente. Por outro lado mantém-se acesa, qualquer que seja o vento que bata na chama. É provável que se fosse flamejante sofreria o impacto e mais que perder a força, sucumbiria.

É permanente por ser sóbria, assim diríamos. É sóbria porque desvia da euforia e segue o percurso do palpável, no chão firme e seguro, e leva até onde se é possível chegar.

Conversei recentemente com o economista sênior do Banco Mundial, Álvaro Manoel. Há 11 anos ele está em Washington, onde por nove integrou equipe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e há dois faz parte do Departamento de Política Econômica e Dívida Pública do Banco Mundial. Álvaro é de Cambé e foi professor de Economia da Universidade Estadual de Londrina.

Entre conversa de bastidor e o estúdio de gravação de uma emissora, para entrevistá-lo, trocamos idéias sobre a crise mundial que é por enquanto mais sentida lá fora, mas cujos efeitos enfrentamos no dia-a-dia, mesmo achando que estamos fora da linha de risco.

Nesse contato aproveitei a característica do entrevistado: Álvaro Manoel, que a serviço do FMI no passado e agora do Banco Mundial viaja por todo planeta, é um especialista, mas fala a língua de um cidadão que não precisa ser economista para compreender questões relacionadas à economia.

Por isso a conversa flui e aperfeiçoa-se espontaneamente, sem haver necessidade de forçar a barra. Claro, Álvaro Manoel é otimista, mas mantém a preocupação preventiva em relação aos tormentos que as dificuldades econômicas podem provocar num país.

Mas sem exageros. A preocupação preventiva é, em primeira escala, uma necessidade. Desse etapa parte-se para um plano de enfrentamento que é papel do governo. Da mesma forma, no nível das pessoas comuns, deve haver uma recomendação de cuidados, pois não temos como prever se os efeitos da crise mundial virão como um vento mais forte ou como um tufão.

No momento sentimos: a alta quase diária nos produtos básicos de supermercado, por exemplo, não são explicados nem pelos economistas brasileiros e muito menos pelas autoridades. O que temos são números oficiais que apresentam pequenas alterações. Os índices, aliás, parecem ser de outra realidade que não é a nossa. E não percebemos no governo qualquer plano de enfrentamento de situações adversas. O barco vai e a sensação que temos é de irmos à deriva.

Vi semana passada a posição da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo sobre a crise mundial. A entidade fala em risco de demissão. Isso é preocupante. Infelizmente estamos nas vésperas do Natal. E o consolo que nos resta é de afirmar, com convicção, que a luz se mantém acesa e teremos que ter força para, em primeiro momento, mantê-la no iluminando, e depois para tornar a sua claridade suficiente aos nossos projetos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Crônica - A janela cai e eu ainda sonho com ela

Retorno mais uma vez à Vila Nova, o bairro onde cresci em Londrina. Cheguei agora à Rua Juruá. Minha casa é de madeira e nunca recebeu uma pintura. Manchadas pelas chuvas as tábuas são escuras, com tonalidades diferentes entre uma e outra mata junta.

Minha casa não tem varanda e eu tenho inveja dos vizinhos que têm varandas na frente e atrás. As janelas da minha casa são de tábuas e eu fico imaginando como seria bom olhar de dentro para fora pelas vidraças das casas que cercam àquela onde eu moro. São janelas sem trincos. As de casa são mantidas fechadas com taramelas de madeira.

Minha casa não tem forro e eu enxergo os telhados quando deito, à noite. Em madrugadas claras, quando as luzes são apagadas, eu conto os pontos onde a luminosidade invade minha casa através de furos e quebrados das telhas.

Chega-se à porta da sala da minha casa subindo uma escada de cinco degraus. Antes era de madeira, mas o tempo fez os pregos enferrujarem e um dia, por insistência de mamãe, o dono do imóvel mandou construir uma de cimento.

O piso da minha casa não é encerado. Tábuas iguais as das paredes forram o chão. Há frestas em vários pontos e eu me preocupo: e se um ladrão entra embaixo da minha casa e me espia pelas frestas?

A porta da cozinha dá para um quintal enorme. Ela só é fechada por dentro por uma taramela no meio e um trinco comum em cima. Uma tábua foi corroída pelo tempo e eu tenho muito medo: um rato pode entrar à noite.

Minha casa está levantada do chão por tocos de árvores. São toras antigas que apodrecem em contato com a terra. Uma delas, de tão velha, precisou de um reforço: meu pai encheu um latão com cimento e colocou ao lado para evitar que a casa cedesse. Foi nesse latão que um dia, na correria, escorei a coxa e me feri. Mamãe me levou nos braços até o Sandu, abaixo da linha férrea, onde deram oito pontos no machucado.

A janela da cozinha da minha casa estava com pregos soltos porque a madeira já não suportava qualquer remendo. Ela despencava e um empurrão por fora poderia derrubá-la. Eu ficava com medo de alguém invadir a minha casa à noite para roubar o que? Nada havia de valor.

Esta é a parte que mais me afeta. Quarenta anos depois, morando hoje em um apartamento de uma região nobre de Londrina, ainda sonho com a janela caindo. E nem a casa velha da Rua Juruá não encontro agora. Ela foi demolida.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Crônica - Papai Noel, por que o senhor chora?

Papai Noel arranjou um emprego temporário de 20 dias até às vésperas do Natal. Trabalha de segunda à sexta das 14 às 22 horas. Aos sábados pega no batente às 9 da manhã e segue até às 17 horas. Acertaram quatrocentos e cinquenta reais com ele, sem registro em carteira e sem direito a passe de ônibus. Mas Papai Noel tem uma refeição e um lanche assegurados por dia trabalhado.

É muito pouco. Mas o serviço não é difícil. A atividade nem treinamento exigiu. Apenas orientaram: fale o menos possível, sorria sempre, faça cara de bonzinho e repita sempre o ho, ho, ho. Pediram para ele repetir até acertar a altura e o tom: ho, ho, ho. Um pouquinho mais alto, mas nem tanto. Descontraído, sem forçar: ho, ho, ho. Repita olhando no espelho: ho, ho, ho.

Papai Noel tem uma carinha triste. É magro e baixo. Tem a pele escura e a cara pelada. Nenhum fio de barba. A loja que o contratou deu um jeito. Encheram a roupa de Papai Noel com espuma e ele ficou gordo. Para esconder a cor escura da pele colocaram nele uma barba postiça que começa nas pálpebras e cobre mais da metade do rosto. Um óculos de aro de metal esconde o resto.

Também perguntaram ao Papai Noel se ele tinha um botinão preto. Papai Noel, quando foi acertar o emprego temnporário, foi com o único calçado em boas condições que restava: um tênis cinza. Não servia. Tinha que ser preto e com salto. A loja resolveu o problema com uma botina de borracha, daquelas usadas por pessoas que trabalham em local úmido. Na borda do cano colaram chumaços branco de algodão.

O cinturão preto foi feito de tecido e fica retorcido. Papai Noel tem que ajeitá-lo sempre. Na cabeça, o gorro vermelho com borda branca e bola de lã também branca na ponta fica apertado. Mas se fosse um pouco mais largo cairia e mostraria os cabelos pretos e encaracolados de Papai Noel.

Para tirar fotos com as crianças a loja providenciou um trenó de madeira puxado por seis renas de massa plástica. Montaram um cenário para ele ficar. Além da tradicional árvore de folhas verdinhas e bolas vermelhas, com algodão imitando neve na copa, existem velas gigantes feitas com material reciclável e três bonecos de neve que simulam um sorriso apagado, distante, inexpressivo.

E ficam todos, esperando os visitantes, sob um calor que o sistema de ar condicionado não consegue amenizar. Os bonecos de neve não degelam. As velas nunca se apagam. A árvore se mantém verde, com bolas vermelhas e algodão sob a copa. Só o Papai Noel transpira.

O serviço temporário veio em boa hora. Ele estava desempregado e quebrava o galho vendendo CDs e DVDs piratas. Papai Noel ainda é novo, tem lá os seus cinquenta anos, mas já tem um neto e duas netas. Ontem uma menina de uns cinco anos, a mesma idade de uma das netas de Papai Noel, recebeu um abraço do bom velhinho, ganhou balas, tirou fotos no trenó e depois perguntou: "Papai Noel, por que o senhor está chorando? E ele respondeu com um ho, ho, ho que saiu tremido por causa do nó na garganta.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Crônica - Sobre panetones e suas embalagens

Dezembro tem dessas coisas. E vai o sujeito denunciando na cara o tédio de ter que seguir a mulher com um carrinho de roda engripada. Na virada de cada corredor ele tromba com  panetores. Com caixa de papelão, de latinha ou embrulhado em embalagens transparentes. As opções de sabor são variadas: de chocolate ou passas; chocolate branco ou preto; mais queimado ou no ponto. E assim vai.

Na semana passada um supermercado oferecia um produto muito em conta: pagava-se no caixa do estabelecimento R$ 3,58 e o consumidor levava para casa panetone para o café da tarde de sábado. Para o empurrador de carrinho, para a mulher que vai na frente selecionando os produtos, para o enjoado do filho que só gosta de marca boa, para a filha e o namorado dela que apenas beliscam, para a vovó que começa a comparar a qualidade das coisas de agora com as do passado.

Enfim, quando se trata de consumo caseiro, existe quase uma unanimidade entre o empurrador de carrinho e a mulher que seleciona. O argumento, sempre convincente, é o mesmo de todas as compras: “Oh bem, vamos levar dessa mais barato pra gente experimentar”. E o cara boceja, ajeita os pés nos chinelos, coça a cara e dá um grunhido: “Vamos...”

E chega a hora de escolher os panetones para presente: “O da Dagmar tem que ser de latinha, daquela marca”. Com aquele ânimo, o empurrador de carrinho pergunta, menos por curiosidade, mais pela obrigação de manter um diálogo: “Por que?” E ele fica sem resposta, pois a mulher já está lá na frente virando o corredor.

“Para o tio Leornardo pode ser um desses de caixa. Ele não faz muita questão. Gosta de tudo. Ou faz de conta que gosta...” E o cara coça a batata da perna direita com a sola do pé esquerdo, arrota disfarçadamente, e solta outro grunhido: “Por que?”

“Olha, pra tia Vita e pra sua irma Anselma vamos levar estes mesmo, de R$ 3,99. Poderia até ser o de R$ 3,58 que estamos levando pra casa, mas vai que elas descobrem que compramos na promoção”. E o cara, abordado justo quando olhava a moça de jeans apertando tudo, disfarça e pergunta: “Quem é mesmo que está com emoção?”

Acabou a compra. Ela reclama que ele não ajuda em nada. Ele diz que está com o saco cheio. Ela pede para ele esperar na fila de um caixa enquanto troca o saco de farinha que veio furado. Ele, distraído, vai para o caixa reservado às pessoas idosos, com deficiência ou bebê no colo e espera. Quando ela chega ele está na boca do caixa. E a moça informa: “O senhor não pode passar neste caixa”. O jogo é muito duro, crianças!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Conto - Mentiras, omissões e outras mentiras

Pequenos motivos dispensam telefonemas para esclarecer, tirar dúvidas, trocar idéias, discordar, elogiar, condenar ou acatar. Médios e grandes também.

Houve um tempo em que tudo era permitido. Uma vírgula no lugar errado e o celular estava pronto para que as perguntas fossem feitas. O que houve? O que causou isso? Algum descontentamento?

Por melhores que fossem as respostas, a provocação não era poupada: anda meio distraído ultimamente...
E mais perguntas, seguidas de outras. Fiz algo errado? Quer conversar sobre isso? Não está feliz comigo?
E outra provocação: está muito esquisito nos últimos dias...

Anita tinha esse jeito. Queria tudo no controle. Às vezes chegava à inconveniência de tanto telefonar para tirar satisfação. Do tipo: ontem, no jantar, reparei que você deixou a sobremesa de lado.

Justificativas feitas, ela simulava aceitar, mas emendava, logo em seguida. Estava com tanta pressa, ontem?
Irritante. Haroldo nem sempre respondia. Em certas ocasiões se omitia, sabendo que ela sofreria dias, semanas e até meses por não tem recebido atenção.

E jamais subestime Anita. Podia passar um bom tempo, mas ela encontrava uma maneira de retomar o assunto. Lembra que no mês passado, quando fomos naquele restaurante, você atendeu uma ligação no celular? Pois é. Fez uma cara de sonso. Quem é que estava do outro lado da linha? Alguma mulher? Sabe que dá para perceber, né? Você muda a voz e o jeito de falar...

Essas insinuações nem vinham ao caso no começo da relação. Era o tempo bom, das paixões, quando tudo se supera por causa do ardor. E durou mais ou menos um ano e meio. Haroldo concordava com si próprio que havia sido um período longo.

Passada esta fase ainda restava o amor. Foi quando Haroldo decidiu responder às provocações de Anita com mentiras. Era, sim, uma mulher. Aliás, uma mulher muito respeitável: a minha tia lá de São Paulo.

E foram muitas mentiras. Ora a supervisora da loja, em seguida a caixa que não conseguiu bater o movimento do dia. A zeladora ligava todas as noite, avisando que havia terminado a limpeza e perguntando se precisava de mais alguma coisa. E Haroldo até aumentava o tamanho da mentira. Combinei com a zeladora para telefonar todos os dias antes de ir embora. Senão, você já viu. Relaxa e deixa metade sujo.

Como também foram tantas as invenções que não havia mais em que se inspirar para justificar ligações telefônicas, saídas mais rápidas dos encontros diários, ausências e serviços extraordinários. Cursos, então, foram constantes.

E Haroldo optou pelas omissões. Deixar Anita perguntar e nada responder. Fazer ela sofrer de curiosidade. Calar como se estivesse consentindo com as provocações. Foi então que ele percebeu que nem um restinho de amor sobrava naquela relação que foi mantida por conveniência e quase piedade.

Ou seja, mais uma mentira. E Anita já não faz perguntas nem dos grandes atrasos e ausências. Não é que ela tenha entregado os pontos. Ela decidiu também mentir. As provocações, agora, são para Diogo, colega de trabalho de Haroldo, e ainda estão na fase da paixão.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Crônica - Esta grande cidade é muito minha

A Quintino Bocaiúva era calçada com paralelepípedos e abaixo dela meu avô paterno mantinha uma quitanda, na Belo Horizonte, logo após a esquina com a Fernando de Noronha. O telefone da quitanda do vovô era preto. Menino de calção de elástico descendo pelas nádegas, eu não podia mexer no aparelho. Mas assistia com curiosidade minha tia tirar o fone do gancho, acionar a manivela para chamar a telefonista e quando atendida pedir uma ligação.

Nasci naquele trecho do centro de Londrina e o parto foi em uma casa pouco mais adianta da quitanda, quase na esquina com a Mossoró. Nunca tive curiosidade de perguntar a minha mãe o nome da parteira que me ajudou a vir para este lado do mundo. Hoje que não a tenho mais sinto muita falta dessa informação. E não há parentes que possam me dar um sinal sobre a mulher que acompanhou minha mãe no parto.

Provavelmente ela morava naquela região do centro da cidade. O comércio já se estabelecia na Rua Belo Horizonte e vias próximas, mas ainda havia muitas residências. E elas deviam abrigar parteiras em quantidade suficiente para trazer londrinenses ao mundo. Poucas pessoas recorriam aos médicos e aos hospitais naquele tempo.

Nasci num dia 6 de maio do ano de 1956, mas só fui registrado no dia 26. Os 20 dias de atraso geravam multa, por isso as famílias diziam no cartório que a criança havia nascido na data em que estavam providenciando o registro. Com menos de um ano de idade meus pais mudaram-se para a Rua Juruá, na Vila Nova, um bairro abaixo da linha férrea que separava Londrina em dois.

A casa onde vivi até a adolescência era a de número 181. Na verdade, uma casinha velha, de tábuas escurecidas pelo tempo, sem forro e com porão de altura que cabia a gente, quando criança, de pé. O Assoalho era também de tábuas. As falhas na madeira mostravam frestas enormes em alguns pontos. A única rua calçada com paralelepípedo era a Araguaia. O resto era poeira na estiagem e barro na chuva.

Os nossos passeios eram no centro de Londrina. E, na volta, passávamos pela quitanda do vovô. Verduras e frutas dividiam o estabelecimento de uma porta com balas, doces, flores e refrigerantes. Às vezes vovô nos presenteava com um cacho de uva. Era uma fruta muita rara na nossa modesta casinha da Rua Juruá, onde tínhamos, em compensação, três pés de manga rosa, uma moita de cana-de-açúcar, um pé de limão rosa, um abacateiro e, na cerca, maracujá doce.

O Bosque Central de Londrina tinha uma área cercada. Era passagem obrigatória da família. Macacos, aves e pássaros podiam ser visto. São marcantes as idas ao centro para assistir o desfile de 7 de setembro. Na volta, pelo menos um pacote de pipoca salgada representava o prêmio pelo bom comportamento. Íamos ao Cemitério São Pedro a pé, da Vila Nova até depois do centro. E no caminho de volta, um contorno pela Belo Horizonte, na quitanda do vovô.

É aquela Londrina dos anos 60 e 70 que mantenho no meu coração. A cidade completa 77 anos de idade. Estou com 55. Ela permanece jovem e obteve muitas conquistas. Eu, se ainda não me sinto velho, sei que a idade vai apertando, diminuindo a velocidade dos passos, tornando as subidas mais acentuadas.

Mas continuo aquele londrinense que gosta de andar a pé pela cidade que o trouxe ao mundo e o acolhe. Sem egoísmo, eu digo: esta cidade é minha. Muito minha.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Conto - Uma boneca de presente para si mesma

A boneca que pronuncia vinte palavras é tão interessante quanto a que fala dez frases. E veja que o preço é o mesmo. Mas bem que Liliane gostaria de levar a que mexe os olhos. Esta é uma mocinha de cabelos alisados metida num vestido curto. E pisca com charme. Aquelas são bebês dizendo as primeiras conjunções de vogais e consoantes. Coisas simples e mais ditas, como vovó, vovô, chocolate e mama. Usam vestidos simples de desenhos infantis: bolinhas, xadrez, bichinhos e outras decorações comuns. Trazem chupetas e carregam mamadeiras. Tem mais recursos e custam mais. Falam quando obrigadas: a dona do brinquedo tem que apertar a barriga.

E se Liliane preferisse também aquela que conduz um carro cor de rosa, então as opções formariam um leque e a escolha, provavelmente, ficaria para depois. Sorte que ela ainda não chegou à boneca que dança. Melhor ainda por ter passado com desprezo pelo corredor onde estão expostas as que representam as estrangeiras. Algumas trazem em suas caixas toda a maquiagem necessária, além de vestidos, sapatos, correntes e pulseiras. São luxuosas e caladas. Não se encontra uma Barbie que diga papai ou mamãe. Quando o fazem, as pronúncias são em inglês.

Olha só a outra pedindo ajuda para colocar a pulseira. Muito moderninha, imagina Liliane. A moça que mexe os olhos é mais simples. Até por isso parece mais bela. Liliane não quer uma peruazinha moderna e jovem. Uma boneca tem, enfim, que representar o mais fielmente a infância. Por isso as que falam quando têm suas barrigas apertadas são interessantes.

E aquelas, maiores, pena que não fazem nada. Chamam a atenção por causa das expressões dos rostos. Algumas reproduzem asiáticas. Outras são mulatas. Isso é diferente. Fogem dos perfis das loiras, as que mais aparecem nos mostruários. Liliane está pensativa. Provavelmente imagina que algum estudo norteia os fabricantes. Do tipo, bonecas louras vendem mais.

E nenhuma decisão. Liliane está comprando uma boneca para presentear uma criança. Mas é como se estivesse fazendo a aquisição para si mesma. Na infância dela as bonecas eram de plástico com as pernas e os braços encaixados. Os meninos criavam casos com as meninas arrancando os membros dos brinquedos. Um leve amasso deformava a boneca. Os cabelos eram moldados com a própria massa. Os olhos e a boca eram desenhados. Por isso Liliane preferia as bonecas de pano que sua mãe fazia. E aquele brinquedo com cabelos feitos de fios de lã trocava de roupas que Liliane confeccionava na costura a mão.

Quase adolescente Liliane quis uma boneca que chorava quando era balançada. Nunca ganhou uma. Por isso ela imagina que a menina a ser presenteada gostará muita dos modelos que dizem vovó, vovô, papa, mama, chupeta, chocolate e outras palavras que as bonecas de pano nunca pronunciaram.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Crônica - Variedade, fartura e conversas em dia

O lagarto recheado era uma das especialidades de dona Luiza. Ao molho, a carne ficava macia e saborosa. Cortada em fatias, pedia repetição. Mas havia opções. O frango temperado e assado em casa, no forno do velho fogão de quatro bocas, fazia a turma esquecer do peru. Crocante por fora, a carne derretia na boca. E não há exagero nessa avaliação. Um peixe assado também era tradicional. Dona Luiza se preocupava com os diferentes gostos do filho único e das três irmãs, do marido, dos genros, da nora e dos netos.

Onze netos, a maioria na fase da correria, do copo de refrigerante virado, do arroz derramado no sofá. Sim, arroz. Dona Luiza não dispensava no Natal e no Ano Novo o sushi que ela mesma temperava e enrolava. Mas fazia questão de reservar uma panelada de arroz branco com alho, óleo e sal para os parentes que não tinham os olhos puxados. Ninguém tinha do que reclamar. A salada habitual era a adaptação da maionese: batata em pedaços grandes, ovos cortados ao meio e tempero com vinagre, pimenta do reino e sal. Nada de maionese, dona Luiza dispensava o uso daquilo.

Para beber, refrigerantes e vinho de garrafão. A marca não era nobre, mas o sabor ganhava simpatizantes a cada refeição. Dona Luiza acordava mais cedo no Natal e no Ano Novo. Ela sentia-se na obrigação de preparar sozinha toda a comida. Era uma forma de reunir a família. A turma começava a chegar lá pelas dez da manhã, quando os preparativos por conta daquela mulher já estavam bem encaminhados.

No almoço a comida era devorada sob conversas, gritarias das crianças, aparelho de tevê ligado e um ambiente interessante de soltura, desinteresse e fraternidade. Aquela era a família da dona Luiza: filho, filhas, nora, genros, netos, netas e marido. Ela comia pouco. Na verdade dona Luiza alimentava-se de felicidade por estar com a família.

Havia variedade e fartura na mesa de dona Luiza. Mas o luxo era desconsiderado. Costureira, aquela mulher trabalhou pelos filhos a vida toda. Com a renda do seu trabalho ajudava nas despesas de casa e economizava para as reuniões familiares que começavam pouco antes do almoço e só terminavam à noite, quando a mesa ficava praticamente vazia.

E ela sorria um sorriso de contentamento. Eu enxergo aquela expressão de felicidade todos os dias. O meu Natal é de poucos preparativos. Na verdade, eu passo pela data como se ela fosse mais um dia de nossas vidas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Crônica - Preparativos de certos tempos em certos locais

Ai Dagmar! Ganhei um frango lá do Zecão. É caipira, de carne durinha. Ele diz que caiu de uma carrocinha uns quatro, com os pezinhos amarrados, e o carroceiro entretido com a música do celular nem se tocou do prejuízo. Foi embora e os coitadinhos se debatendo no asfalto quente. O Zecão não teve outro jeito. O carroceiro se foi e os frangos ganharam um cercado de tela de arame lá no fundo do quintal dele. Ontem eu fui fazer um acerto daquele negócio e peguei um frango. Ta quitado e bem pago. Nem vai incomodar a cárie e dá pra palitar os dentes com os ossinhos.
  
Só vê se não precisa pegar um gás fiado lá na vendinha. Negocia com o cara. Diz que em janeiro a gente acerta. Se sair aquele servicinho que estou vendo na semana que vem é receber e pagar o gás. Já especulou se a sua patroa vai dar cesta de Natal? É em boa hora, viu? Vai fazer diferença. E nem precisa vir com aquelas coisas caras. Castanha, passas e latinha de patê é pra quem tem luxo. Cá pra nós, uma cesta básica completa é mais vantagem. Vê se negocia isso, mulher.

O vinho eu dou um jeito. Até passei no supermercado para espiar preço e está tudo lá em cima. Cinco e noventa, seis e setenta, oito e cinqüenta e sete. Tudo quebrado no preço, não sei pra que isso. Tem uns de dezoito contos. Cerveja eu prometi que não bebo mais. Se eu disse que não gosto é mentira. O bolso é que não permite. Mas se você autorizar eu compro uma garrafa de pinga para fazer umas batidinhas. Prometo que não vai ter exagero. Uma garrafa eu economizo pra ter batidinha no Natal e no Ano Novo.

E não se preocupe com o limão. Ali no caminho do canteiro de obras tem um quintal com um pé carregado. É limão rosa, mas serve. Dá até pra fazer suco com o que sobrar. E pra ninguém dizer que apanhei limão de quintal alheio sem consentimento eu faço um servicinho pra dona da casa. Tem lá um rachadão na calçada e ninguém da construção vai se importar se eu jogar um bocado de cimento pra consertar aquilo e deixar lisinho.

Eu não sei não se ganho alguma coisa. Sou terceirizado e temporário, estão dizendo que só ganha cesta quem tem carteira assinada. Mas bem que podia. Se der jeito ainda converso com o mestre de obra e vejo se não dá uma exceção. Quem sabe? É merecido, viu nega! Olha que a gente dá o sangue.

Só acho que não vai dar pra receber visita, viu? Fica de alerta e se a sua cunhada insistir abre o jogo. Avisa que aqui está escasseado, não é mole não. E que a gente não vai fazer nada, só a comida normal de um dia qualquer. Mas juro que um panetone eu vou comprar, isso tem que ter. Vejo um daqueles de três e noventa e nove. Não precisa ser encapado com caixa. O gosto é o mesmo, só a embalagem é mais cara.

É, nega, tem que apostar. No ano que vem melhora. Este ano eu me danei por conta da falta de serviço e nem seguro desemprego tive. Trabalhar terceirizado é assim. Mas acho que dou um jeito. Vou botar a vergonha de lado e viro cabo eleitoral. Mas em troca eu quero um emprego se o cara for eleito. Uai, tem um monte de gente que faz isso. E a gente, na modéstia, fica chupando o dedo...    

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Crônica - Os preparativos dos tempos de agora

Não quero bagunça em casa nem no Natal e nem no Ano Novo. Se algum parente convidar para almoçar fora a gente vai. Mas esqueçam aquelas insinuações do tipo, o seu apartamento é maior do que o nosso. Nada disso. Tudo bem, nesse caso a gente encomenda uma carne assada e leva.

Que reuniãozinha de colegas você está falando? Aqui em casa? Está lesa, menina? Onde? Não inventa moda. Veja com o seu pai se ele empresta de graça uma salinha lá da associação de funcionários. E não me diga que estou de má vontade. O regimento interno e o estatuto do condomínio está muito claro: nada de bagunça depois das dez da noite.

Depois imagina eu aqui tocando pra fora os seus coleguinhas às onze da noite com o síndico de plantão lá embaixo pronto para dar uma bronca. Nem pensar. Tudo bem, se o seu pai conseguir o local eu compro uns refrigerantes e encomendo um bolo. O que? Cerveja? E quem autorizou você a tomar cerveja fora de casa? 

Seu pai disse que pode? Se disse, não teve o meu consentimento e aqui se ele autorizou e eu não sei fica tudo na estaca zero. No máximo um espumantezinho bem fraco, mas isso a gente ainda vai conversar em família.

E quem foi que agendou esta novena de Natal aqui em casa? Não estou sabendo de nada. Agora vocês mandam e desmandam na casa? Eu falei que participava, mas não aqui em casa. Sei como é. Chega um e quer água. Outro pede pra ir ao banheiro e não dá descarga. E o piso fica todo riscado e sujo. Vocês vão limpar pra mim depois? Então dispensa. Digam que vamos viajar bem no dia da novena.

Escuta aqui, ô querido. Ligou o cara do sacolão dizendo que entrega na quinta a carne que você encomendou para o Natal. E eu fiz questão de perguntar: já vem assadinha, né? O cara riu na minha cara e disse que tem todos os ingredientes lá. Você está pensando, por acaso, que eu vou temperar carne e assar? Está doido, é?

Quem colocou isso na sua cabeça? O papa? Está pensando que eu vou passar a manhã do Natal temperando e assando carne? Ah, você faz isso. E quem é que vai fazer a limpeza do forno e da louça depois? O fantasminha camarada? Pode cancelar. Se não puder doa a carne crua que comprou pra entidade lá da rua de baixo. Eu não quero e está decidido. Assunto encerrado.

Está bem. Precisamos seguir a tradição. Você sugere uma árvore de Natal onde? Em cima da televisão? Ao lado do vaso sanitário? Na tampa da máquina de lavar roupa? Ah, estou entendendo. Quer que eu faça como sua mãe fazia: corre atrás de um galho de árvore, pinta o tronco de alumínio, bota uns chumaços de algodão sobre as folhas para imitar neve e pendura um monte de bolas coloridas. Ai pirou de vez. Se quer enfeite de Natal passa lá no bazar e compra uma guirlanda pequena pra pendurar na porta e pronto. Aqui dentro de casa não quero luzinha acendendo e apagando. Pode jogar a sua idéia fora.

O que mais precisamos decidir para o Natal e o Ano Novo? Lembrei. Então liga para a sua irmã e veja se a gente pode almoçar lá no Natal e telefona ainda está semana para o seu irmão para ver se ele não vai viajar no Ano Novo. Nos dois casos eu levo a carne assada, a maionese e o pudim, pois isso eu compro pronto no supermercado.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Conto - Outros tempos de preparativos

Laurita, desamarra a galinha e solta no cercado. Deixa ela correr naquele trecho pra dar músculo e não ficar mambembe na assadura. Manda Efigênia reservar uns cinco quilos de carne de porco. Mas pede a parte limpa, tem que ter um pouco de gordura na capa. Senão ela fica seca. Tem que pedir no armazém a reserva de uns dois garrafões de vinho. Cerveja não vai ter não. É cara. Se alguém quiser traga por conta. E a geladeira não agüenta gelar nem água.

Os meninos tem que aproveitar o percurso e ajuntar lenha. Tem gravetos no caminho e até aquelas estacas jogadas no canto do galpão dão fogo. Tem que por assado no fogo uma seis horas e se não pegar brasa ainda não fica no ponto. Macarrão tem que fazer sim. A Mirtes se encarrega, ela tem mão boa. Alguém dá jeito de limpar o cilindro para passar massa. E nem precisa capricho no corte, é só passar faca afiada de cima abaixo e a tira sai perfeita. O molho é melhor deixar pra Nena do tio Ambrósio. E nem põe carne moída naquilo. Carece não. É uns tomatões bem fervido com cebola e muita pimenta até chegar na calda grossa.

Fruta não preocupa. Sobra laranja rosa até para o suco. Dá quantidade bastante para as crianças. Pros moços libera o vinho. Pras moças faz uma espécie de mistura: dois dedos de vinho para um dedo de água. E adoça e põe gelo. Fica igual refrigerante. Manda liberar uns dias antes a parte de cima da geladeira e usa copinhos de plástico pra gelar água. Vai precisar muito. É capaz de fazer calor.

O bolo é missão da Toninha do primo Antão. Aquilo conhece. Não fica nem duro e nem fofo. Dá um ponto bem firme. É bom reservar carvão da sobra da lenha para usar no forno do quintal. Aquela meia saca de batata agüenta até lá. Cozinha com ovo e faz uma espécie de salada. Maionese a Rita prepara. Fica melhor que o comprado pronto. É gosto de verdade, a gente sente na boca.

Aquelas duas cadeiras deixa na varanda que depois eu arrumo. É só tornear uma perna e o resto conserto nos pregos. Se der tempo tem a sobra de tinta azul escura. Pinta tudo que esse branco encardiu. A mesa deixa na madeira pura, ninguém vai por reparo com a toalha presenteada pela vó Maria. Coitada. Ela faz falta hoje em dia. Mas não convinha ficar daquele jeito, cada dia mais esquecida. Era uma judiação. Tem dia que nem eu ela soube quem era.

Será que o Alfredo e a Saura passam o Natal aqui? Sei não, viraram gente da cidade. Fazer o que, é a vida. Mas é capaz deles passarem depois, lá no meio da tarde, só para dar um oi. Devem ter trocado de carro outra vez e nesta entrada a partir do asfalto que termina na mercearia é um solavanco. Não fosse o luxo eu ia buscar de Kombi. Vê se consegue propor a eles. Busco e levo a hora que for.

É bom chamar a Mariana. Viúva ainda de luto precisa de companhia. Os filhos ela não vai ter. Eles não ligam. A mulher vive sozinha. Pede a ela pra ajudar nos preparativos. Assim distrai, deixa de pensar na perda. Quem sabe ela não enxergue o mano Tadeu com bons olhos? Ta na hora de ele tomar juízo e arranjar companheira. Ou você não sabe que na solteirice dela o Tadeu tentou namoro? Todo mundo sabe. Só não deu certo porque ela era soberba. E deu nisso, a viuvez.

Depois pede a Acácio pra vir me ajudar. Vai dar umas vinte pessoas. Com ele eu monto uma mesa lá na coberta. Dá de ponta a outra e nem chuva atrapalha. Semana que vem a gente faz compras e eu me cuido pra não esquecer os pregos. O que tinha enferrujou de tanta falta de uso. Lembra que na terça ou na quarta a gente vai. Aproveita e passa na loja pra comprar calçados. O meu vai dando, lá pro meio do ano eu compro um par. Mas vê uma camisa, à noite tem missa lá no bairro e quero ir novo. Pelo menos no Natal...

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Crônica - Bom Dia Homem de Neve!

Sim, Bom Dia! É a forma a que recorro para manifestar a minha solidariedade ao senhor. Vejo que não sorri e se mantém em silêncio desde que decidiram que o seu lugar é este: o gramado de um jardim, sob este sol dos trópicos. E nem mãos te fizeram para se abanar do calor.

Entendo. A missão que te deram é nobre e o sacrifício vale. Será? Leio a sua quietude e interpreto que deve trazer alegrias. Crianças posam ao seu lado para fotografias tiradas pelos pais. Os curiosos tem encaram e o seu papel é ficar impassível. Há quem ironize: o que este boneco de neve faz sob os céus dos trópicos?

Eles sabem que o senhor é um dos símbolos do Natal. Mas desconfiam: nos trópicos os bonecos de neve são injustificáveis, mesmo que para lembrar a chegada do Natal. Gente intolerante, concorda comigo?

Se fosse ao pé da letra então o Papai Noel não usaria um trenó puxado por renas por aqui. E nem as árvores natalinas teriam algodões imitando neve em suas copas. E este chapéu preto de material quente? Incomoda? E este cachecol vermelho no pescoço? Em mim causaria alergia devido à transpiração abundante.

Mas o senhor, homem de neve, está ciente da sua missão: fazer de conta que o Natal daqui é semelhante ao de lá, onde a neve cobre as ruas, as calçadas, os telhados e as árvores. E se te reservaram este papel aqui nos trópicos, o senhor deve, sim, cumpri-lo.

Faz muito calor neste seu lugar. Bate sol de manhã e à tarde. Não sou tão forte quanto o senhor. Devo me recolher à sombra e sei que farei isso com certo peso na consciência. Porque o senhor não sorri e se aquieta. 

Percebo que gostaria, se fosse seu arbítrio, alegrar as pessoas e anunciar o Natal de outro jeito. Mas nem a fala te deram para expor seus motivos. E eu, tão passivo quanto o senhor, me permito gozar de um pouco de frescor logo ali, sob aquela árvore que por ser natural e de uma espécie deste clima quente, resiste aos enfeites e não ganha neve de algodão.

Bom Dia Homem de Neve!

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Crônica - E as músicas natalinas são de chorar...

Lamentosas, melentas, arrastadas e deprimentes, elas são cantadas por intérpretes variados. Choraminguentas, empurram a euforia lá na parede dos descartes. E olha lá na fila dos caixas da loja de departamentos o montão de gente ouvindo e chorando, chorando e ouvindo, pagando e chorando, parcelando e ouvindo simone chorando. E os cabelos dos xororós lambidos emocionam tanto quanto a juba dos chitões, sejam eles zinhos ou não.

Aquele cidadão gordo de camiseta regata levanta os braços em cima dos balaios de pães frescos e sugere, meio que mandando:

- Não tem algo do Roberto Carlos pra rodar? Manda aquela música que ele gravou pra Globo... Aquela com um monte de artistas de novela chorando...

Nisso a menininha de seis anos cutuca as nádegas da mãe, que pensa ser vítima de uma bolinação:

- O senhor cutucou a minha bunda?

O idoso faz com a cabeça que não e com o queixo aponta para a garotinha. Ela não entende o sinal e insiste:

- O senhor apertou a minha bunda com este dedão sujo...

Só então a mulher percebe que a pessoa é maneta. Foi preciso a intervenção da filhinha:

- Fui eu, mãe. É que aquele homem gordo que pediu música do Roberto Carlos abriu os braços em cima do pão francês. Tem um monte de pelo no sovaco...

Constrangimento instalado. Enquanto xororó arrastava um lamento natalino e uma balconista do setor de eletrodoméstico, logo adiante, se derramava em lágrimas, a mulher da bunda cutucada percebeu que o gordo do Roberto Carlos tinha um matagal exposto em cima dos produtos e um bigode daqueles que quando o prato é sopa fica duro de tanto molho.

E o gordo bigodudo e peludo quase abre a boca para se defender. Por sorte, o funcionário responsável pelo som anunciou a promoção de CDs natalinos que incluía uma novidade com Roberto Carlos, a Globo, os artistas das novelas, o Didi, o Faustão parecendo uma pirâmide invertida, o Caco Barcelos querendo ensinar jornalismo e o Pedro Bial só ali, de tocaia, selecionando entre os músicos do rei um bom participante da próxima edição da Baita Besteira Brasileira.

Então tudo entrou nos conformes. O gordo dos pelos se aquietou e ouviu o rei cantar lançamentos dele e da globo de anos atrás. No que um careca de bermuda, meia e sapato social comentou:

- Mas no Natal é tudo novidade. A gente gosta, fazer o que?

A mulher da bunda cutucada, coitada! Ainda não se sabe se ela se aliviou quando soube que a filha é que havia feito aquilo ou sofreu decepção por não ser bolinada nem por um idoso.

Xororó e chitão foram para a banca de promoção. Estava por nove e noventa e caiu para um e noventa. Simone, na versão do “então é natal”, estava praticamente de graça. O cartaz da banca dizia: “Compre uma dúzia de banana caturra e ganhe cinco CDs”.

O pessoal da fila do caixa chorou mais ainda ao ouvir, pagar, digitar senha do cartão, escutar, somar e empacotar panetones. Aquilo sim era uma confraternização natalina. E o rei é especialista em armar comoção. Ouviu-se, no rabicho de uma música, ele dizendo:

- São muitas emoções...

Mas tinha que aparecer um estraga prazeres. Veio de chinelos de dedo, unhão encardido, e entrou no departamento de crediário cantando:

- Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai noel...

E foi aquela revolta da galera. Também pudera! Assis Valente, o autor desta música contestadora, que nos perdoe. Natal, afinal, é para ouvir lamúrias e chorar. O gerente da loja até tentou acalmar os ânimos:

- Gente, não é hora de manifestação. Deixa os protestos lá para os estudantes da USP. Aqui é pra gastar bastante e escutar estas músicas emocionantes. E quem quiser chorar que chore, caramba... 

O gerente, aliás, estava de saco cheio de tanto ter que ouvir música natalina e ver consumidores chorando de emoção. Mais certo foi o menino que olhava os notebooks na seção de informática e perguntou ao pai:

- Natal não é para todo mundo ficar feliz?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Conto - Além da imagem refletida no espelho

Lisandra é uma imagem na parede decorada com vidro de uma loja do fim do corredor de uma galeria comercial no centro de Londrina. Cabelos aos ombros, estatura média e magra, o reflexo é tão imóvel quanto a própria mulher espelhada.

O vestido solto preso aos ombros com tiras largas cai bem. Desce até uns dedos acima dos joelhos em uma meia roda armada suavemente. A cor do tecido é clara, puxando para um azul que imita o jeans desbotado. É um modelo esportivo, com botões destacados na frente, de cima abaixo, e bolsos enormes na altura das coxas.

Uma menina, diria em outros tempos, ao se refletir, a mulher do fundo do espelho. Sandálias de poucas tiras, apenas suficientes para mantê-las nos pés, dão uma sensação de conforto. Rasteirinhas, também transmitem leveza em todos os sentidos. Inclusive da pessoa que as usa, cujas unhas pintadas de vermelho atraem os olhos de quem a vê caminhar.

Os cabelos, castanhos escuros e lisos, dariam a idéia de soltura e descompromisso com as formas sofisticadamente trabalhadas em salões cercados de espelhos. A maquiagem é leve. Nenhum tom forte causa impacto. Os lábios apenas brilham com o gloss teimosamente retocado.

Nem jóias e bijuterias aumentam o peso da mulher. No pescoço, pouco se percebe a corrente fina com a minúscula imagem de uma santa na ponta. Nas costas, a discreta tatuagem, em preto, com o nome de um homem. No pulso esquerdo, uma peça artesanal apenas quebra, feito uma tira fina com algumas pedras de enfeite, a brancura da pele.

Sempre foi assim. Lisandra é avessa aos excessos. Ou, como diriam os bons críticos, uma mocinha excessivamente simples que sabe usar o desapego aos acessórios como um charme. Tudo nela é básico. Houve quem comentasse que a beleza de Lisandra não impacta. É algo que entra sorrateira na imagem formada nos olhos de quem vê e se instala. Não é, enfim, beleza de arrancar suspiros. É um calejamento que inspira.

Falta-lhe, porém, o sorriso. E quando ele vem é naquele conjunto o único componente que levanta a suspeita de ser falso, fabricado sem critério, arranjado. Lisandra sorria antes, até quando parava na frente do espelho daquela loja para se orgulhar de sua simples beleza enquanto esperava por ele para o lanche do meio da tarde.

Se fosse uma lenda, haveria uma versão: ele, por uma maldade que não se tem explicação, roubou o autêntico sorriso da mulher do fundo do espelho e só deixou sua marca tatuada nas costas dela, que agora improvisa a falsa expressão de alegria com esforço tamanho. E ali se percebe que incomoda muito em Lisandra ter que fazer de conta que está feliz. A imagem no vidro põe o real sentimento muito além do reflexo.  

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Conto - Cadeiras sem parafusos é o caos da vida

A grama está alta e foge de Marilda a disposição de usar os finais destas tardes de sol para colocar o quintal em dia. As podas foram abandonadas faz semanas e no jardim as plantas reclamam atenção. A roseira curva seus galhos. Enfileiradas sobre um suporte de madeira, lá no canto onde a sombra da tarde alivia o calor, os vasos de orquídeas negam beleza. Além do verde manchada de marrom pela poeira, nenhuma cor.

Cuidar do jardim e ajeitar o quintal tem sido tarefas esquecidas. Marilda nem consegue acertar o lado de dentro da casa. A área de serviços virou um depósito. Tudo o que é descartado da sala e dos quartos ganha um espaço ali. Cadeiras que dependem de um aperto do parafuso ficam encostadas.

Até o velho computador sente os efeitos do sol ou da chuva preso a uma estante perto da janela. E ele já deu tanto para Marilda! Aliado na produção de textos poéticos, coragem para terminar as monografias, solidariedade nos momentos de solidão com os acessos às redes sociais e músicas, muitas! Foi por anos um abrir e fechar constante do drive para tocar músicas até o ponto do aparelho se esgotar, desgastado, e se dar ao direito de falhar em algumas ocasiões.

Jardim, quintal e casa, enfim, esperam providências. Nem a lâmpada queimada do abajur foi trocada. A cortida está suja e manchada. Em outros tempos Marilda providenciaria lavagem imediata. E se o resultado da faxina deixasse a desejar, ela acharia tempo para consertar o que estava errado, refazer o que poderia ser melhorado, limpar, cozinhar, passar, almoçar, jantar, tirar um tempo para se esticar no sofá e viver do jeito que ela vivia.

Era uma mistura de coisas feitas em atividades diversas. Tudo ao mesmo tempo. Marilda rascunhava a conclusão de um trabalho importante da pós-graduação no mesmo momento em que esquentava o leite do café da tarde. E aproveitava a caminhada da sala até a cozinha para aguar uma planta, catar um cisco, ajeitar a capa da poltrona, descascar uma fruta e pensar no tema de uma poesia para ser escrita à noite.

A mudança foi radical e nem foi por vontade própria. Na correria de antes Marilda até reservava tempo para os sentimentos mais íntimos. Ela tinha uma paixão, Alfredo, que no auge da relação até inspirou poemas. Depois, quando Marilda ainda jurava amor, ela própria percebeu que as rimas escapavam e a métrica desengonçava, em versos frios e sem nexo, com rupturas e palavras sem força. E os poemas viraram prosas.

Ali começaram os desacertos que, a princípio, nem ela imaginava enfrentar. A presença de Alfredo na casa passou a ser indesejada. Mas por falta de uma conversa franca ele passou a ser mais assíduo. E de tão solícito na vida dela Alfredo passou a ser um inconveniente.

Marilda, desnorteada, reagiu ao contrário. Para camuflar a ojeriza pelo rapaz ela fugiu para as atividades científicas. Produz atualmente uma elogiada monografia sobre biologia, área que ela sempre amou e dela jura nunca abrir mão. E esqueça a casa, o quintal, o jardim, as cadeiras para parafusar, o almoço, a janta e o leite esquentando numa caneca sem brilho.

E Alfredo vai ficando, mais por vingança do que por não ter para onde ir. Parece que ele sabe que Marilda está matando a vida que era dela e do seu jeito, com a sua presença cada vez mais constante naquele ambiente desacertado.  

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Crônica - Mamãe lavava as roupas no batedor

Um tronco de madeira serrado ao meio descia em diagonal até a terra a partir de duas estacas fincadas no chão. Media dois metros de comprimento ou pouco menos. Ao lado, sobre pilhas de tijolos, o tambor servia de reservatório de água. Pedras e cacos de telhas calçavam o pedaço do terreno onde dona Luiza batia as roupas todos os dias.

A água era puxada de balde do poço perfurado lá atrás, quase na beira da cerca de madeira que separava o quintal. No andar normal fazia-se o trecho entre o batedor e o poço com uns vinte passos. Balde vazio na ida e balde transbordando água na volta. Pesado e desajeitado, curvava as costas da mulher magra e de baixa estatura. E não bastava uma viagem: a roupa era muita e o tambor grande.

Molhar, ensaboar, bater, esfregar com escova, enxaguar e pendurar. Os varais ficavam ao lado, em área livre dos galhos da mangueira e do abacateiro. Os arames atravessam o quintal de um lado a outro. Quando lotados de roupas pareciam mosaicos montados ao acaso, embora as calças ficassem juntas e as camisas, presas pelas barras, ganhassem o arame mais à sombra.

Toalhas de banho, lençóis, guardanapos e cobertores eram estrategicamente pendurados onde não cobrissem o sol de outros varais. Tapetes encardidos ficavam de molho por mais tempo. Ás vezes, de tão sujos, exigiam uma boa fervura no fogão à lenha da cozinha.

Dona Luiza nunca havia visto de perto uma máquina de lavar. Naquele bairro simples ninguém ainda havia comprado uma. Parentes de localidades mais nobres, quando em visita, contavam vantagens. Diziam que era só ligar e esperar. Parecia até um milagre. Roupas limpinhas e quase secas dependiam apenas de um sopro de vento para ficar no ponto de passar.

Mas na simplicidade daquela mulher, que nem fogão a gás ainda tinha em casa, o sonho estava muito tempo antes das tomadas de energia elétrica e dos botões de ligar e desligar. Dona Luiza queria ganhar um tanque de cimento para lavar suas roupas.

E eu tento contar agora, anos depois de perdê-la fisicamente: quantas calças, quantas camisas e quantos pares de meias que eu usei na minha infância mamãe suou para lavar? Quantos baldes de água foram necessários carregar? 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Conto - Correrias, histórias de medo e banho frio

As noites de inverno ainda eram de desafios para as crianças da Rua Juruá. As mães ameaçavam: “Se voltar sujo pra casa vai tomar outro banho com água fria da torneira lá no quintal”.

Intimidava. Mas nem sempre causava efeito. E lá ia a turma na correria caçar qualquer tipo de brincadeira. Se não bastasse a poeira das vias e vielas sem asfalto, a grama molhada do campinho de futebol encardia os chinelos e manchava as roupas.

No pega-pega os botões das camisas pulavam para longe. E depois se veria o que dizer em casa para justificar o descuido, ainda que a chance de sair impune fosse pequena. Puxão de orelha, no mínimo. É assim que os pais consertavam os erros dos filhos naqueles tempos.

Jogava-se conversa fora depois da canseira. Alguns galhos catados ao acaso serviam para uma fogueira, acendida com a caixa de fósforos pega discretamente de alguma cozinha. E a turma se acocorava ao redor para contar casos que os pais ouviram dos avós e que teriam acontecido com parentes de distante passado.

Histórias de dar medo. Da bola de fogo no pasto vindo em direção das pessoas que passavam; do enorme animal que pulava do rio e sentava na garupa das bicicletas quando o trabalhador cruzava a ponte no caminho de volta para casa; da mulher que cantava sem parar todas as noites numa mata ao lado do povoado, e do choro estridente de uma criança lá nas bandas de uma mina d’água que ninguém ousava visitar à noite.

E outras mais, todas com algum tipo de explicação. A corrente no sótão puxada de um lado a outro parece que fora usada contra alguém que perdeu a vida. As versões variavam: o patrão a usou contra um empregado que havia se engraçado com sua filha; ou o empregado teria feito justiça com as próprias mãos após ser maltratado por anos pelo patrão.

Olhos esbugalhados, meninos e meninas cruzavam os braços e se apertavam um no outro. E não era pelo frio. O medo mexia até com os mais corajosos. Subia um frio pela espinha que fazia tremer. Junto com as assombrações se misturavam cobras gigantes que o avô do pai de alguém abateu com um único tiro certeiro. E no descuido e falta de informação, houve quem inventasse ursos enormes quebrando janelas das casas das fazendas em pleno Norte do Paraná.

Nada, porém, mais assustador do que aquilo que todos esperavam acontecer lá pelas nove, nove e meia e até dez da noite, em ocasiões de mais tolerância: o grito dos pais chamando a meninada para se recolher. “Antes trate de pelo menos lavar os pés e as mãos lá no tanque de roupa...”

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Conto - Ladrão de poesias e de pretensões

Tantas canções e nada. Ele as roubava dos autores e delas extraia as letras para presentear pretendidas namoradas com mensagens que só os poetas sabem desenhar no papel.

Algumas acreditavam ser ele o dono da inspiração. Outras sabiam que as rimas e a métrica eram frutos de uma apropriação indevida. Havia as que evitavam conspirar e aceitavam o recado, retribuindo com um aceno: às vezes um encontro na saída da escola ou um passeio na praça do bairro na tarde de domingo.

Possibilidades! No amor adolescente isso tinha peso. E não se esperava muito daqueles primeiros contatos. Quando muito, um leve toque de mão e de sobra a agenda definida para o próximo final de semana. Na despedida, apenas um tchau.

Romântico e cavalheiro, o poeta dos versos emprestados condenava as paixões súbitas. No segundo encontro talvez um beijo e um caminhar mais demorado com as mãos dadas. No terceiro, outros beijos, mais profundos. E assim se mantinha, medido e calculado para o sentimento crescer com o tempo e ganhar consistência.

Algumas possibilidades chegaram ao quarto ou quinto poema, nunca mais do que isso. Houve quem merecesse, entre as pretendidas, autores mais refinados. Assim como algumas não passaram das músicas populares reproduzidas dia e noite nas emissoras de rádio.

Nem todas, porém, queriam uma relação feita de palavras rimadas. Preferiam o fogo do amor queimando nos abraços e nos beijos. Esperavam pela ousadia dele nos afagos, as mãos tocando pontos proibidos num descuido dos olhares alheios. E por falta disso logo se foram, deixando ele livre para ouvir novas canções, extrair as letras e encantar outras pretendidas com versos roubados.

Foram muitas músicas. Vãs tentativas de uma relação romântica num tempo de quentura que exige cada vez mais do físico e muito menos do sentimento. Para umas ele se tornou o grande amigo de confidências e desabafos. Pelo menos isso restou.

E lá vai ele, já com o peso da idade arcando o corpo. Sozinho, ainda ouve canções de outros tempos. E há músicas que trazem junto com as recordações a sensação nele de ter fracassado por não avançar, quando pode, os sinais do coração.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Conto - Palavras cuspidas são armadilhas

Senta e toma fôlego, menina! Bebe uma água. Tem café na garrafa térmica. É de hoje cedo mas ainda está quente. Quer bolacha? Não faça cerimônia. O pão é novo e com uma manteiga vai bem.
E agora me conta, o que anda fazendo da vida? Sumiu, nunca mais apareceu por estes lados. Ficou rica, é? Amigas pobres são esquecidas?

Ah, antes que eu me esqueça: fulano casou com sicrana. Beltrana se separou e está sozinha. Quer dizer, aquilo não é gente de viver sozinha. Ela diz que o marido oficializou com uma amante, com quem teve uma filha. Mas também falam o contrário. O amigo dele, aquele que trabalha na oficina, saiu com a história de que o marido é que decidiu aparar os chifres e se mandou. Que maldade, veja...

E você? Me diz alguma coisa. Pega mais um café. Esqueci de oferecer leite. Tem leite na geladeira, quer que eu esquente? Nossa, nem me dei conta que você sempre gostou de café com leite. Ou melhor, café no leite, verdade? Um pinguinho de café no leite, é assim que você gosta.

Não quer? Mudou de gosto? Ah, entrou numa de dieta. Mas o pãozinho com manteiga desse tamanho que você cortou nem vai pesar na balança. Dá para fechar um buraco no dente se tiver algum. Você está com uns dentes bonitos. Sem querer ser indiscreta: são naturais?

É, a arcada está bem alinhada, branquinhos os dentes. Juro que eu imaginei ser dentadura. Credo, estou brincando. Você sabe que eu gosto de brincar.

Mas fala de você agora. Prometo que não vou cortar. Eu deixo você falar o tanto que quiser. Aliás, a minha irmã fica irritada quando conversa comigo. Ela diz que de cada dez palavras minhas ela consegue apenas responder sim ou não.

Então me diz. Gostando do apartamento novo? Eu fico imaginando: minha amiga sempre gostou de quintal grande e agora tem que viver naquele aperto. Abriu a porta dá de cara com a vizinha da frente. Pisou forte e lá vem reclamação do vizinho de baixo. Aumentou o volume da música e o morador de cima interfona pedindo pra desligar. Mas acostuma, né?

E o bairro? O bairro é bom. Eu acho bonito aquele lugar onde você mora. É limpo, tem muitas árvores. Tem mercado por perto? Onde é que você está fazendo compras? Passei por lá estes dias e vi que tem um açougue na quadra seguinte. E faz assados no domingo. Você já comprou por lá? Ah, que pena. Se você tivesse provado e gostado eu juro que no próximo fim de semana daria uma chegadinha lá.

Então me diga. Fiquei sabendo que está de namorado novo. Olha, cuidado. Morando sozinha num apartamento daquele bairro nobre e de namorado entrando e saindo... se fosse aqui, você sabe. Todo mundo estaria comentando.

Como eu fiquei sabendo? Nem te digo. Outro dia passei por lá na volta da consulta médica. Você não me viu, eu estava do outro lado da rua. Mas eu vi. Você chegou com o rapaz num carro novinho. Muito lindo o carro do seu namorado. Eu sempre disse para o meu marido: tem que saber escolher a cor do carro.

Não, mas, foi só isso. Eu vi você e ele descendo do carro e entrando pelo portão do prédio. Lá só tem uma vaga de garagem? E quando ele decidir dormir no seu apartamento tem que deixar o carro lá fora? Sabe que é um perigo, né, amiga. É nos bairros nobres que os malandros agem. Aqui, coitados, o que eles iam achar?

Mas você ainda não me disse nada de novo. Continua estudando? Trabalha no mesmo lugar? E a sua mãe, como é que está encarando esta história de você morar sozinha? Coitada, sempre preocupada com os filhos. Eu digo sempre pra ela: agora é a sua vez. Passeia, nada de ficar cuidando dos netos. Está na hora de se divertir um pouco.

Não quer mais café? Foi tão rápido. Nem deu tempo para você me contar alguma coisa. Parece que só eu falei. Nossa, será que eu exagerei na conversa. Sabe aquela viúva da terceira casa depois da esquina? Pois é. 
A desaforada me chamou de faladeira. Fiquei sabendo. Faladeira, eu? Está certo que eu falo bastante. Mas faladeira não, concorda? Como? Você fez com a cabeça que não concorda. Até você deu para me censurar. 

Tudo bem, você se enganou, é isso? Não, fica mais um pouco. Está cedo. Fala mais um pouco de você porque senão eu fico com a impressão que só eu falei...  

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Andar por ai ou ser politicamente correto

No dia 18 de novembro de 1928 nasceu o Mickey. O nome de batista dele é Mortimer. O carinha bebia que nem um poço seco e fumava igual chaminé de fogão de lenha durante o preparo do feijão. Um terror para os padrões da sociedade, mas na época entendia-se que ele havia surgido para dar um contraponto ao ser humano seguro e consciente.

Talvez uma mexida. Ou, quem sabe, um tapa na cara. Mas foram os próprios criadores de Mortimer que trabalharam a sua redenção. Ou, diríamos, conciliação com o útil e agradável. Então, por sugestão de Lílian, mulher de Walt Disney, Mortimer ganhou um apelido simpático: Mickey.

Deixou de beber e de fumar. Tornou-se um modelo exemplar de espécime. Mickey é um ratinho, mas no imaginário de quem o lê é um ser protótipo, ideal para nele ser inspirado, sabedor, ciente e consciente, comportado e eterno namorado da Minie.

Poderíamos ousar e dizer que o Mickey, depois de largar a bebida e o cigarro e abandonar o seu nome de batismo, virou uma chatice. Reúna o maior número de gibis dele e confira: raramente o Mickey sorri. E se não sorri, pior ainda quando se exige uma gargalhada.

Mickey, se transposto para a realidade brasileira, seria aquele cara que ainda criança demonstra precocidade em assuntos complicados. Sim, aquele tipo de criança que a gente enxerga como um velho sábio, quando não cria ojeriza devido ao desnível entre a aparência infantil e a cabeça de doutor.

Por isso Mickey namora eternamente Minnie e deixa a impressão de uma relação vencida: é o velhinho namorando a jovem ratinha. Depois, aquela criança precoce será na escola sempre o melhor. Quando começa a trabalhar se destaca e agrada os chefes.

Um dia decide-se pelo namoro comportado. Chega o noivado, que só deve ocorrer quando a casa do futuro casal já estiver comprada, mesmo com financiamento da Caixa. E isso dói...

Depois do noivado o Mickey brasileiro planeja o casamento, que de acordo com a sua previsão deverá ocorrer só depois da esperada promoção no serviço. Já casado, o Mickey brasileiro esconde embaixo da cama toda a sua precoce inteligência e faz filhos: um, dois, três e quatro, se o quinto não escapar para o óvulo da mulher.

Nessa fase o Mickey brasileiro já está pensando na aposentadoria. O carro ele só compra à vista, nada de financiamento. Aliás, a casa da Caixa já está quitada. E ele pensa numa chácara ou num casa de praia. E corre atrás do imóvel muito antes de saber se a Minnie brasileira e os filhinhos tupiniquins querem mesmo a Casa de praia ou a chácara. É ele quem decide.

E chega a aposentadoria. E a vida acaba. Aliás, chata, demorada e sem acontecimentos que mexem, o Mickey brasileiro é igual ao Mickey do Walt Disney: um conformado com a vida como ela é. É muita ousadia dizer que o Mickey é um carinha politicamente correto?

Há quem prefira subverter e mencione o poeta Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889), num trecho muito conhecido: “Quem passou a vida em brancas nuvens / E em plácido repouso adormeceu, / Quem não sentiu o frio da desgraça, / Quem passou pela vida e não sofreu / Foi espectro de homem, não foi homem, / Só passou pela vida, não viveu.”

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Crônica - Em papo de futebol tem que ser doutor

Arroz, feijão, batatinha, bife e futebol. A bola das vez é o Corinthians. E eu, falso torcedor de um time decadente, nem sei mais qual é a cor da sua camisa. Era verde, agora sei lá qual tonalidade colocaram no caldeirão da tinturaria.

O almoço é na base do prato feito. Comida para ser engolida, no máximo, em 15 minutos. Nada a ver com economia. É que o restaurante é pequeno e se o trabalhador demora na mesa chegam outros e ficam rodeando. Às vezes lançam um olhar intimador do tipo: “Tu não se toca não?”

Por isso mesmo é que nesta quinta-feira, dia 17 de novembro de 2011, como apressado e obrigado. Obrigado sem relação com agradecimento. Obrigado a saber que o Corinthians agora é líder do Campeonato Brasileiro com 64 pontos e para conquistar o penta pode até empatar uma das três últimas partidas.

E tenho detalhes: só pode empatar se o Vasco tropeçar lá na frente. Em outro ambiente eu participaria da conversa usando ironia: “E se tropeçar lá na frente perde a chuteira na grande área adversária? Não dá para marcar descalço?”

Fico quieto. Silêncio, porque este assunto o senhor não domina. Conformo-me, porém, pois posso não ter conhecimento de classificação, tabela, desempenho de jogador, erro do juiz e reação da torcida. Justo, eu não assisti o jogo do Corinthians. “Quanto mesmo foi o resultado? Um a zero? E o Corinthians ganhou? Que bom... contra quem mesmo foi o jogo? Ah, Ceará...”

Nessa tentativa de me enturmar a minha batatinha escapou do garfo. Tão dura que estava, pulou do prato e rolou por três mesas. Disfarço e vejo que na queda esbarrou na barra do jeans da mulher do lado e deixou uma mancha de óleo.

Sorte que saio do constrangimento da batata com um assunto mais familiar: Flamengo! É que li de manhã que o clube comemora aniversário neste 17 de novembro. Pelo menos isso eu sei e posso participar com segurança da conversa: 

“Pois é, o time presidido pela Patrícia Amorin comemora aniversário de 116 anos em crise financeira. Nem o contrato com o Ronaldinho está certo. É um time histórico. Surgiu em 1895 com as cores azul e ouro. Só depois mudou para o vermelho e preto. E começou só com o remo. Por isso se chama Clube de Regatas do Flamengo. Futebol ali só foi iniciado em 1912. O primeiro jogo, no campo do América, foi de goleada: dezesseis a dois sobre Mangueira em jogo apitado por Belfort Duarte...”

A essa altura o bife já estava crocante de tão seco e seboso. A última batatinha do prato nem deu para o gosto, porque foi misturado ao arroz puro. É que o feijão veio uma mixaria e dele nem mancha restou. E eu contando a história do Flamengo. Para ninguém...

Pois após criarem certa expectativa em torno da partida da noite, pela Libertadores, concluíram que o Figueirense ganharia e deixaria o Flamengo no chinelo. E foram embora, palitando os dentes. Que desaforo!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Conto - Nosso brinquedo de papel

O barco feito de folha de caderno eu dispensei. Ficou perdido em algum lugar fora do meu controle. Sei que tinha um texto seu, escrito especialmente para mim. Na verdade eu não o li. Sim, porque o barco que você me deu eu o perdi.

Ou não me dei conta. Ou o barco nem chegou a mim. Talvez você tenha se equivocado por culpa de dúvidas se o barco com a mensagem deveria cumprir o seu trajeto. E ele tenha ficado no seu porto a balançar, deteriorar e naufragar, levando junto o texto e a mensagem que eu não li e nem sei do que trata.

Não minto, se soubesse teria respondido. Ou, delicado nas omissões, teria ao menos acenado que o seu barco chegou, mas sem o recado, por ter enfrentado no percurso tempestades que engoliram a tinta da caneta.

Certo, por enquanto eu perco por ter vacilado. Eu quis ser gentil e fui falso. Inventei uma nau e seu trajeto quando me perguntou sobre o seu barco. Pensei que você se referia a um brinquedo qualquer feito com folha de caderno.

Só despertei sobre o meu erro quando áspera você me acusou de não saber responder a pergunta que me fazia no texto desenhado no casco de papel. Foi uma tentativa de consertar uma situação. Veja que compliquei ainda mais.

Não, o seu barco nunca atracou no meu porto. Ele deve ter ficado no caminho ou nunca você o colocou a navegar. Por isso eu não pude responder. Nunca houve, enfim, uma pergunta. E só agora eu me questiono sobre o que perdi. Quem sabe eu tenha ganhado. Me desculpe.

E você, está pronta para repetir a pergunta? Se não te interessa retomar um assunto de tão longa viagem e trajeto acidentado, ainda assim eu respondo, agora consciente e sem medo de errar: querida, o seu barco não chegou até mim porque você o reteve nas suas águas. Passado tanto tempo, creio que o que eu pudesse te dito na época em que o fabricou ficou à deriva. Convém não ajuntar as letras que forem encontradas no caminho. Será muito difícil transformá-las em frases que possam ser entendidas.

Assim, minha amiga, continuamos, ambos, cafajestes sem soluções para nada que nos diz respeito. Estamos acostumados a isso, concorda?

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Conto - Distância e tempo, tempo e distância

A voz ao telefone é apenas amigável. Respeitosa mas longe, em nada se parece com aquela de tempos atrás. Velhos amigos, porém cansados, apenas se suportam e cumprem com a obrigação de se falarem de vez em quando.

É praticamente uma vida o que sustenta o contato. Um passado agora trocado por intervalos variados, porque ela e ele mantém em suas agendas os telefones um do outro na lista dos favoritos. O ontem foi realmente de mútuas prioridades. E as listas deixaram de ser atualizadas, com ambos mantidos em destaque.

Os telefonemas eram, no mínimo, diários. Nos bons tempos houve ocasiões de muito exagero, com um ligando e o outro respondendo duas ou três vezes de manhã, mais três ou quatro de tarde e quatro ou cinco à noite, no curto período em que não estavam juntos. E as madrugadas eram de valores elevadas nas contas pagas às operadoras de telefonia.

Valia a pena. Ela amava ele e ele amava ela. Assim se juravam e planejavam algo eterno. Loucura que não tem fim e se renova. Sem rotina para evitar desgaste. Como se cada contato fosse o primeiro.

Era desse jeito em tudo. No café da manhã, no almoço, na janta, no lanche da tarde, no passeio no calçadão, nas idas ao shopping, nas compras e na cama. Exceto os costumes teimosos e encralacados, o resto se pautava na fuga do que foi ontem para experimentar de um jeito diferente.

No sexo, até obscenidades passaram a ser consentidas. Da cama passaram ao sofá, do sofá foram para a área de serviço, da área de serviço optaram para a máquina de lavar. Até que desceram para a sala de ginástica do condomínio, onde a bicicleta ergométrica passou a comportar em alguns horários de pouca freqüência do local dois corpos no acento e quatro pés nos pedais.

Não se sabe se o que dava sentido a aquilo era o aparelho ocupado por duas pessoas ou a possibilidade de um flagrante. Ambos admitiam que as duas hipóteses eram válidas. Mas como nada podia ser repetido por mais vezes do que o necessário, havia o consenso da busca do mais interessante: no carro estacionado na garagem do prédio, na rua, na praia, na piscina, no escritório, no elevador e haja mais opções.

Quanto aos demais elementos da relação, há tempos não se tinha mais cabeça para fazer diferente. Café com mais leite, leite com mais café e pronto. Pão esquentado no microondas hoje e aquecido na chapa amanhã. Manteiga ou margarina. Suco de laranja ou melão. Por esta rua ou por outra. No mercado antes ou depois.

E foi crescendo um vazio. Não havia como criar nada de novo. No começo ambos negavam essa possibilidade, embora assumissem um comodismo. Para compensar, gastavam o estoque do inusitado no relacionamento físico. Com a janela aberta e a luz acessa, na porta do apartamento, na escadaria, com o carro em movimento e nada mais.

Decidiram evitar outras ousadias e o vazio foi mais sentido. O que acontecia várias vezes ao dia passou a ser diário. Não durou muito e virou semanal. E depois mensal, bimensal, trimestral e já faz tempo que eles apenas se conversam por telefone. Sem euforia e declarações forte, ambos se toleram como bons amigos. É o que restou.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Conto - Grades, correntes e cadeados fechados

Lícia dispensou o café hoje cedo. Preferiu um suco natural de laranja colocado no ponto com duas pedras de gelo. Na pressa, esvaziou o copo com quatro goles enquanto ajeitava as tiras das sandálias e acertava as alças do vestido por cima do silicone do sutiã. Os cabelos foram presos com uma tiara de forma a não caírem sobre as orelhas.

Arrumou-se com simplicidade. E sem querer destacou a sensualidade escondida. O vestido claro descia na medida até a cintura, sem mangas e com decote cavado, mostrando uma pele macia e clara. Depois abria-se em roda até abaixo dos joelhos, com caída perfeita graças ao tecido macio e ao desenho e corte adequados para a medida: nem gorda e nem magra, Lícia estava no peso e não se descuidava da balança.

Nos pés, quase nada. As unhas, em vermelho, é que davam cor, deixando para o segundo plano o trançado duplo de cor clara e pouco enfeite. Sim, uma discrição surpreendente para uma mulher acostumada a carregar no tom da maquiagem. No rosto, só o baton. Nos cantos dos olhos os leves sucos das rugas não foram disfarçados. E reforçaram a expressão serena e altiva de uma pessoa disposta a enfrentar o dia com mudanças importantes.

Na alimentação, o suco no lugar do café. Sem pão e sem manteiga. Nada de açúcar ou adoçante. Nas roupas, o vestido em vez do jeans apertado e a blusa justa, complementadas com os calçados de salto e o perfil prepotente da fêmea agressiva. Na maquiagem, o leve baton. Só as unhas mantiveram o vermelho forte nas mãos e nos pés. Mas cabiam no conjunto e até aliviaram a alvura de todo o resto.

Na condução, Lícia trocou a corona com o marido pelo percurso a pé até o trabalho. Saiu vinte minutos mais cedo e caminhou, aproveitando a solidão para pensar o que mais precisava alterar no seu projeto de vida. E ali estava a principal etapa a ser refeita e resolvida.

Lícia sentia-se presa a um casamento que no começo nada mais foi do que sexo. Depois virou parceria e agora chegava à conveniência. Uma prisão sem correntes e nem grades que prendia ela a ele e ele a ela. A solução parecia fácil. Talvez ele esperasse por um posicionamento dela. E ela pedia a si própria que a manifestação partisse dele.

Mas nada se fazia de parte ou outra. E ambos já se haviam dado chances para o início das conversas. Mas ele nem telefonou a ela para perguntar porque havia dispensado a carona de manhã. E ela nem precisou retornar ligação para avisar que havia preferido almoçar com os colegas do trabalho e ele devia esquentar a sobra da janta. E assim foi por longas madrugadas de insônias, Lícia e ele vivendo juntos. Apenas isso, eternizado e comendo a vida por dentro.