quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Crônica - Nos semáforos da vida

Ninguém abusou hoje perto de mim e rodou em volume estridente alguma canção natalina interpretada por duplas sertanejas lamuriantes ou cantores oportunistas. Pudera! Hoje é o último dia do ano e o Natal já passou seu encanto espiritual para outra celebração religiosa, assim como transferiu expectativa comercial adiante, no Carnaval, na Páscoa, no Dia das Mães e tudo o mais que vier.
O Natal de todos os anos tem um lado deprimente. As canções para comemorar a data falam até de "muito dinheiro no bolso" e "saúde pra dar e vender". Mas as melodias são tristes. Os cantores choramingam, puxam um lamento lacrimejante. Nada a ver com o nascimento de Jesus, que pressupõe alegria, esperanças, perspectivas.
Por isso fugi este ano das grandes lojas que climatizam seus negócios com as músicas natalinas. Eu havia decidido dar um basta no baixo astral. Por precaução, colei dois fones de ouvido nas orelhas e sai para as compras, quando tive necessidade de fechar alguma transação. Como a compra da cueca branca, das meias amarelas, da camiseta de não sei quantas cores, Não fiz nenhuma aquisição de peso, pois o patrão me proibiu fazer loucuras dando-me um salário aquém das minhas pretensões.
Propositadamente esperei pelo 31 de dezembro, dia de folga no trabalho, para olhar de perto coisas que vejo praticamente todos os dias mas enxergo com a visão de quem está pouco interessado com o calo que arde nos pés dos outros. No semáforo da Fernando de Noronha com a Maringá, um dos eixos de uma das regiões nobres de Londrina, encontrei a adolescente negra, pano amarrado na cabeça para segurar os cabelos, pedindo uma ajuda. Lembrei do aviso em algum lugar advertindo para o erro de se dar esmola. Mas, caros, quantas esmolas nós damos aos corruptos na forma de gorjetas e comissões? Isso nenhuma placa recrimina.
Mais adiante vi a mãe daquela menina negra, escostada a uma árvore, meio que zelando pelo trabalho da filha. Cocei a cabeça e imaginei mais uma família londrinense que optou pela profissão de mendigos. E daí? Quantas pessoas que se dizem profissionais andam por aí fazendo picaretagem? Me convenci mais ainda de que podia ajudar quando vi a menina se afastando da janela do carro e correr para a mãe, a quem entregou um embrulho. Era um lanche, que a mãe repartiu e dividiu com a filha. Comeram como se devora uma ceia.
Na mesma região, o rapaz vendia balas de goma no semáforo da Maringá com a Tiradentes. Dois pacotinhos por um real. Para ajudar a família. Comprei. Saborei as guloseimas e como não organizei e nem fui convidado para uma ceia, preparei para a entrada de 2009 apenas um copo d'água, bem gelado. Na verdade, já fiz a minha ceia com a menina do lanche repartido com a mãe e o rapaz das gomas para ajudar a família. Então só me resta arrotar e dizer: Feliz Ano Novo!

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Crônica - Pedras...

Eu gosto de andar sobre as pedras soltas da rua de chão batido com os sapatos furados e as meias rotas porque as pedras rolam ladeira abaixo e levam com elas o pedaço de tristeza encravado na unha da minha alma.
Eu gosto de sentir as pedras soltas da rua em declive no solado dos pés ásperos quase protegidos pelas placas emborrachadas de um par de botinas porque o declive da rua me leva para um lado e eu teimo subir para o outro enquanto me iludo que a subida é o destino e a descida é o oposto.
Eu gosto de pisar nas pedras soltas da rua de barro com os pés descalços para ter nas pontas dos dedos dos pés doloridos a sensação mais ou menos gratificante de ter fundado uma base no afundar de uma pedra colocada a esmo no meio da minha vida.
Eu gosto das pedras soltas da rua de chão batido porque elas rolam. Eu gosto das pedras da rua em declive porque elam descem. Eu gosto das pedras da rua de barro porque elam fincam no chão e me escoram para que eu possa sempre subir até chegar ao meu rumo.

Crônica - Energia negativa

O nome dele todos preferem ignorar. É uma figura daquelas que derruba o bom clima de qualquer ambiente, embora tente ser a sensação do momento quando entra. Fala alto, gesticula, discute e teima em prevalecer sobre os interlocutores. Embirra nos temas e se faz repetitivo. O tom de voz é quase aos gritos.
Ultimamente ele tem como alvo os jornalistas. Em função de um tema que está na boca de praticamente todas as lideranças da cidade, o fulano lê os jornais e procura erros nos textos de todos os profissionais do jornalismo. Quando não os encontra, inventa contradições e põe-se a debater com quem encontra pela frente não o conteúdo do texto, mas o caráter de quem o escreveu.
Ele não conhece pessoalmente nenhuma das vítimas. Mas vocifera com propriedade de quem sabr até em que parte do corpo do profissional há uma cicatriz. Isso para não entrar em particularidades. Tampouco sabe da ideologia dos jornalistas, mas discursa como quem leu a teoria de todos os grandes líderes políticos do mundo. Mas percebe-se, nas falas, que é um zero em teoria. Imagine na prática...
Fulano é tão confiante que se torna um equívoco ambulante. Ele pensa que agrada. Mesmo em ambiente que lhe é impróprio, assume postura de autoridade. Manda nas pessoas, senta nas cadeiras dos mais elevados, pede água, consome café e discursa. Há quem imagine: quantos perdigotos se espalham...
Ultimamente, as pessoas optaram por iludí-lo. Fazem de conta que o ouvem, mas na verdade o ignoram. Deixam ele gesticular e esbravejar. Quando muito, os que estão ao redor esboçam caretas que se confundem com indignação com o que ele diz e pouco caso às queixas que ele apresenta.
Na verdade, há um código do silêncio no ambiente onde ele não manda, não agrada, não é bem-vindo e não é ouvido, mas passa todos os dias: vamos fazer de conta que este cara não existe.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Conto - Meus cabelos brancos

Havia um jardim cercado de pedras à esquerda do portão de madeira tosca e sem pintura. Margaridas cercavam os roseirais na primavera, ao longo de um canto do quintal atapetado com a grama cuidadosamente aparada com a tesoura. Era ali que eu me transformava em médica, quando as bonecas de pano apresentavam sintomas de mal-estar. Ou a mãe zelosa a preparar saladas com água da torneira e folhas de plantas. Como também a professora, a transmitir uma lição, ralhar com um aluno teimoso. Aquilo era também o meu outono, o meu inverno, o meu verão, os meus dias, as minhas noites e as minhas madrugadas.
Aos fundos, um grande terreno sem calçadas, com tijolos e pedras fazendo uma passarela até o pé de limão rosa e de lá para a manga coquinho. Mamonas cresciam nos cantos e lá naquele passado elas, para mim, de nada serviam. Só os meninos, com seus estilingues, tinham as munições para suas guerras e suas travessuras contra os passarinhos. O fundo do quintal, com suas árvores, seus maracujás enfeitando a cerca e os varais de roupas coloridas lembrando uma festa junina eram a minha Amazônia, por onde eu puxava com um barbante uma caixa de papelão com as bonecas acomodadas dentro. Como se eu fizesse um passeio para longe, em lugar que a minha imaginação me levava.
Eu era uma menina de cabelos lisos e negros. Magra e com os pés no chão, pouco sabia das guerras que ocorriam fora do quintal. Papai, um vigoroso carroceiro a entregar compras e lenhas para os vizinhos cozinharem no fogão a lenha, e mamãe, sempre a limpar, lavar, passar com o ferro de carvão, cozinhar e limpar as louças, eram a minha razão de ser. Única menina da família, tinha em meus três irmãos os eternos inimigos. Eram eles a desmontar diariamente os castelos que eu construía com pedacinhos de tijolos.
Nem quando comecei a ir à escola me dei conta que havia um mundo fora do meu jardins. Mas ali já percebia que havia diferenças entre eu e minha coleguinhas de turma. Minhas roupas surradas e meus chinelinhos de dedo me inibiam diante das calças, das blusas e dos calçados que algumas delas usavam. E eu comecei a sonhar com um sapatinho de salto, mas mamãe dizia que nem mocinha eu era ainda. Só muito depois eu soube que os ganhos de papai como carroceiro jamais permitiriam um simples calçado para todos nós, filhos.
Assim decidi que iria ajudá-lo. Primeiro a esfregar as roupas mais leves para mamãe, a rastelar as folhas secas do quintal, a passar pano no chão de ladrilho da casa para tirar a poeira. A escola era apenas uma obrigação, pois o abraço da professora era para as meninas bem-vestidas. Para mim sobravam broncas pelo dever de casa mal feito, pela caderno com orelhas nas folhas.
Eu ainda era adolescente quando fui levada por mamãe à casa da cabeleireira do bairro, a três quarteirões de casa, onde virei empregada doméstica. Varria, passava pano, lavava louça e passava roupa. Eu só não podia cozinhar, pois a patroa não me confiava o papel de cozinhar no fogão a gás, que em casa ainda não havia.
Foram dois anos ali. Até que fui tomada por sentimentos que me levaram a buscar mais. Desejo de namorar, de me vestir bem, de comprar um baton e um esmalte por mês, de comprar a primeira sandália me empurraram até a porta de uma fábrica, onde comecei dobrando camisetas e terminei como chefe de costura, 23 anos depois. Claro que nesse longo pulo da adolescência até o preparo para a velhice muitas coisas aconteceram. Coisas boas, coisas ruins, desde aquelas que alegram ou machucam o coração até outras que nos dão um sabor de vitória pelo fim do pagamento da prestação de um jogo de sala. Também enfrentei felicidades e algumas decepções temporárias com os meus filhos, mas são coisas de mãe. Brigas com o namorado, depois com o noivo, e por fim com o marido também foram comuns, mas nada que deixasse marcas.
Disso tudo felizmente tenho um bom balanço. Eu venci. Junto com o meu esposo eduquei meus filhos, ajudei-os a se encaminharem em suas vidas, troquei confidências com as meninas e vi as netas e os netos nascendo um atrás do outro.
Mas cá me encontro hoje. Confesso que desnorteada. Sinto que anos e anos de trabalho pouco valor tem hoje. Uma aposentadoria que mal dá para as necessidades básicas me obriga a depender de um dos filhos, aquele que se deu melhor na.vida. E eu tanto queria que fosse diferente...
Vejo um mundo que nada se parece com o meu jardim de tempos atrás. Enxergo nos olhos dos meus filhos a preocupação com os seus filhos, com a droga que se vende nas porta das escolas, com o emprego que se torna cada dia mais difícil, com a vida que encarece cada vez mais. E nada posso fazer.
Vejo meus netos distantes, incapazes de me darem um abraço como eu abracei os meus avós. Vejo-me tratada como uma inútil, alguém incapaz de passar, lavar, cozinhar, costurar, porque os meus cabelos brancos e as minhas rugas denunciam minha idade. Sou velha para as pessoas que me enxergam, pois a maioria não me vê, a não ser nas filas apropriadas do banco para o saque da aposentadoria, quando me tratam como alguém que mais do que respeito precisa de piedade.
E eu luto, sozinha, para que a cor dos meus cabelos e os sucos das minhas rugas não me levem para um mundo de solidão, enquanto jovenzinhos, na rua, me chamam e me tratam de vovozinha.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Conto - Confraternização

Eduarda atravessou o enorme pátio da fábrica contando os passos. Calculou em cerca de quinhentos metros a distância da linha de produção até o refeitório destinado aos operários, percurso que ela fazia de segunda à sexta-feira, quando não entrava na escala de sábado. Naquele 26 de dezembro o trecho pareceu mais longo e cansativo. Foi como subir uma rampa pisando em chão molhado e escorregadio. As pernas doiam e os ombros pareciam cair para a frente. Uma sensação estranha mobilizava Eduarda. Ela tinha que ir e queria chegar depressa, para se livrar de vez daquele compromisso no refeitório e voltar para casa. Mas sentia os seus membros recusarem o seu comando. Lembrou de anos atrás, quando adolescente caiu no porre numa ceia de Natal. Para cada passo que dava para frente, recuava dois.

Na linha de produção Eduarda ocupava um posto na revisão das confecções que vão para a embalagem e ganham destino nas lojas espalhadas em diferentes localidades do Brasil. Ela é uma das sete moças que passaram por praticamente todos os setores da fábrica e em troca de um salário melhor ganharam uma promoção. O valor do aumento, embora irrisório, servia como um estímulo. Há dois anos e meio na mesma ocupação, Eduarda esperava para novembro mais uma elevação. Tinha a indicação de sua chefe e o respeito dos colegas. Na verdade, a substituição da chefe por Eduarda era tida na fábrica como um acontecimento de praxe. Disciplinada e competente, a operária era exemplo. A chefe havia ascendido para o cargo de gerente e só esperava a formalização de uma substituta para assumir a nova ocupação. Enquanto aguardava uma oficialização, repassava seus conhecimentos para a eventual substituta.

Diferente de situações anteriores, quando se faziam até apostas sobre quem seria promovido, daquela vez tudo caminhava para o óbvio. E não seria diferente se não surgisse Elisa, filha de um dos sócios da fábrica de confecções. Recém-formada num curso de moda, Elisa, que nunca havia trabalhado naquele lugar, chegou com autonomia para ocupar o setor e realizar mudanças. Usou um pouco de sua teoria para intervir em práticas tradicionais das costureiras do setor de acabamento. Pediu a substituição de duas revisoras por considerar que ambas não tinham conhecimento suficiente para a função. Apontou dedo para outros chefes, respondeu deselegantemente recomendações que recebeu dos novos colegas com o respaldo da diretoria. Criou intrigas, implicou até com fornecedores e clientes. Além de filha de um diretor, Elisa namorava o sobrinho de um influente político da região, cuja campanha eleitoral costumava ser bancada em parte pela indústria. Por isso a interferência em determinadas decisões da diretoria acontecia de forma flagrante e escandalosa, como se tudo aquilo fosse um grande comitê político. Explica-se: em troca do patrocínio, vantagens...

Eduarda aceitou a decisão da empresa com disfarçada indiferença. Com 19 anos de fábrica, teria mais um ano e quatro meses de trabalho para mexer com a papelada da aposentadoria. Planejava para então lutar por uma vaga no setor de vendas, como terceirizada. O aumento do salário, caso assumisse a chefia da revisão, seria muito interessante não só para a sua renda, mas também para o valor da aposentadoria. A promoção também era vista como um reconhecimento. Deixando a modéstia de lado, Eduarda havia até comentado com alguns conhecidos e parentes que estava para subir de cargo na fábrica. E havia quem perguntasse a ela, passado o mês de novembro, se já estava no novo posto. Eduarda ficava constrangida ao explicar que a empresa havia mudado de idéia. A pior sensação era a provocada pela nova chefe. Eduarda sentia-se pressionada. Para ela, os comentários dando conta de que ela seria a pessoa ideal para ocupar o cargo incomodavam a filha do diretor e namorada do sobrinho do político. Esta respondia a esse sentimento de insegurança com provocação. Eduardo passou a ser rigorosamente controlada na execução do seu trabalho e nos momentos de folga. Colegas passaram a sentir receio de conversar com Eduarda no ambiente da fábrica.
Deixar de comparecer à confraternização de final de ano poderia parecer uma afronta. Eduarda não podia dar chance para ser advertida, pois caso isso acontecesse fatalmente ela responderia com dureza, que poderia se entendido pelos superiores como um desacato. O risco de uma justa causa com quase vinte anos de carteira assinada funcionava como uma mordaça. Eduarda pensou nos dois filhos adolescentes e na mãe que ela cuidava. Separada do marido, mantinha as contas de casa e pagava o financiamento habitacional. Móveis, eletrodomésticos e outras necessidades eram pagos a prestação. As roupas e os calçados dos filhos consumiam boa renda, mas Eduarda preferia privar-se de coisas não fundamentais para agradar os meninos. Assim, uma mesa nova era substituída por uma boa reforma da velha. A idéia de comprar um carro chegou a ser tema de reunião familiar, com os filhos concordando abrir mão de alguns caprichos. Mas quando a família pôs-se a pesquisar preço, modelo, ano e condição do objeto, chegou-se à conclusão que o sonho de um veículo na garagem teria que esperar mais.
A possibilidade de um novo casamento não estava descartada, mas o difícil era compatibilizar o sentimento de Eduarda com o gosto dos meninos. Havia, até nos assuntos do coração, uma democracia familiar. Aos quarenta anos, Eduarda mantinha uma beleza sóbria e era alvo de pretendentes. Mas qualquer novo evento em sua vida dependia, de acordo com os seus planos, do que ela havia traçado para o campo profissional. Dias antes daquele novembro Eduarda havia combinado alguma coisa com um fulano que mexeu com o seu coração, inspirou confiança e, sobretudo, conquistou a simpatia dos filhos. Um sim, conforme prometera Eduarda para o galante, ocorreria depois da promoção. Não que Eduarda vinculasse o seu romance à carreira. O que ela queria garantir era segurança financeira para si e a sua família. O amor era algo que poderia vir depois. O que Eduarda não negava para as amigas era do pulsar do coração. Se não tomasse cuidado, acertaria sua situação sentimental o mais depressa possível.
O eterno conflito entre o coração e a razão. Foi a briga que ocorreu dentro de Eduarda no dia 26 de dezembro. Sem promoção, dias antes ela havia protelado, para não se sabe quando, o anúncio de um compromisso sério com o seu pretendente. Foram dois anos de namoro, com promessas e muito cuidado. Tudo se fez para evitar destemperos e precipitações. Para o fulano, a oficialização do namora significava muito. Por isso ele se decidiu por um basta e anunciou um rompimento daquilo daquilo que, na verdade, nunca havia começado.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Conto - Ceia

- Não mandei água para os desabrigados de Santa Catarina. Nem para os do Rio enviei alguma coisa.
- Valia ajudar. Na minha empresa arrecadei contribuiões dos colegas e depositei na conta.
- Na conta da campanha ou na sua conta?
- Não brinca com isso. Não se faz piada com a tragédia alheia...
- Ué, não é isso que anda acontecendo?
- Mas também não vamos exagerar, né? Foi meia dúzia de pessoas fazendo sacanagem com as doações.
- Você é que pensa. Numa situação daquela um botão enfiado no bolso é mais do que crime.
- Certo. Concordo. E quanto roubaram daquela gente toda para transformar aquele lugar num lamaçal? Isso também deve ser levado em conta.
- Mas que culpa tiveram e quem são os culpados?
- Isso, dê nome aos bois.
- Sacanagem maior é o próprio homem destruir tudo aquilo...
- Que homem? Aquilo foi chuva demais.
- Chuva demais foi a gota d'água. Se aconteceu alagamento alguma causa teve.
- Pois é. Vi uma mansão construída na encosta do morro.
- Também vi casinhas despencando lá das alturas...
- Tem dois tipos de invasão da natureza lá, gente.
- E vem agora você falar de ecologia?
- Espera, deixa eu falar.
- Deixa o homem do meio ambiente falar, caçamba.
- Tem realmente casinhas de pobres nas encostas. Como aqui em Londrina tem fundo de vale invadido, lá tem encostas depredadas. Mas tem muito ricaço com mansões...
- Eitá. Discurso social numa noite desta não, né?
- Nada a ver com discurso. O colega tem razão. Tem ricaço em área onde não se poderia construir.
- Quer dizer, todo mundo é culpado?
- E por que não? Até nós que vamos no verão às vezes ajudamos a depredar.
- Eu pago caro por aquilo e uso do jeito que eu quiser...
- Você sabia que tem praia lá sendo engulida pelo mar?
- Heim???
- Sabiam não, gente?
- Pois é...
- Passa lá um vinho, mulher. Comprade, cmo é que vai o churrasco aí?
- Pera lá. O leitão está quase no ponto. Vai colocando mais gelo pra esfriar bem a cerveja e o refrigerante.
- Me dá uma mão aqui, gente. Senão essa mesa vai despencar daqui a pouco.
- Coloca um tijolo naquele pé e escora. Só avisa as crianças para evitar correria.
- Manda o moleque abaixar esse som. Está doendo os ouvidos...
- Deixa ele. É ceia de Natal.
- Mas do que é que a gente estava falando mesmo?
- Eu comentava da crise lá nos Estados Unidos.
- Tenho um sobrinho lá também. Mas ele continua empregado e não tem do que reclamar.
- Será? Minha irmã está doida para voltar...
- Traz lá os pratos e os talheres. Alguém ajuda a mulhereda no preparo da mesa...
- Com tantas mulheres e a gente tem ainda que ajudar?
- Pois é. E o Ronaldinho...
- Aquilo é mais uma piada.
- Será que joga alguma coisa?
- Isso me lembra o Guga, por sinal um catarinense...
- E a calamidade daquela enchente lá, né gente?
- Pois é. Um bocado de mortes e desabrigados...
- Eu mandei doação pra lá. Roupas e ajudei para comprar água.
- Está chegando a maionese gente. Vai picotando a carne para chegar no ponto.
- Capricha no tempero. Não deixa queimar...
- Segura a árvore de Natal senão ela cai em cima da criança.
- Que coisa. O Lula com setenta e três por cento de preferência.
- O que será que o fulano deu de presente para a mulher dele? Ela está precisando de uma boa plástica...
- Boca maldita...
- Ele gosta dela.
- E a gorduchona do Beltrano? Se ele viesse me pedir sugestão eu recomendaria 24 horas por dia de academia.
- É, mas eu conheci aquela mulher quando solteira. Era magra e bonita.
- Então conheceu ela por dentro?
- Fala sério, vpcê gosta de uma gorduchinha.
- Gosto sim. Mas prefiro uma mais roliça igual a sua mulher...
- Qual é? Vamos brigar de nova numa Ceia de Natal?
- Parem com essa provocação e ajudem aqui no carvão.
- Está na hora da contagem regressiva.
- Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um e zero...
- Feliz Natal!!!
- Abra aqui a espumante. Cadê a caixa de rojão?
- Cuidado com os carros lá na rua. aqui tem que sempre ficar de olho.
- Mulher, dê uma espiada na menina. Ela com esse namoradinho novo não sei não...
- Juventude é assim mesmo. Deixa namorar.
- Não estou querendo ser avô tão cedo...
- Noite feliz!!!
- Está cantando ou lamentando?
- Deixa a moça cantar do jeito dela, pô.
- Você já está bêbado velho?
- Eu nem comecei ainda na cerveja...
- Pára de cantar essa música deprimente, faz favor...
- Coloca um pagode...
- Zeca Pagodinho não.
- Isso, manda um rock e todo mundo entra o clima...
- Vocês viram a chuva lá no Rio? Um monte de desabrigados...
- Vai mais cerveja aí, irmão?

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Crônica - Vida no Calçadão

A estátua viva coça o nariz. O homem de perna de pau aponta o megafone para a massa e anuncia mais um brinde de uma loja de eletrodomésticos. Um religioso radicaliza e ajunta ao seu redor meia dúzia de adeptos conquistados na hora. O artesão fura o couro com um vasador enferrujado. O sorveiteiro palito os dentes em cima da tampa aberta do carrinho de sorvetes. A moça de cabelos vermelhos atravessa a rua com o fone de ouvido vazando música estridente. Uma criança chama pela mãe. Um namorado procura a namorada no burburinho que se forma no caixa da loja de departamentos. Um carro buzina para o entregador que segue a mulher recém-comprador de uma aparelho de tevê. A moto ronca no semáforo e assusta o idoso que atravessa na faixa. A vendedora tira o descanso de quinze minutos entre uma venda e outra para chupar um sorvete de morango. O sanfoneiro toca músicas antigas. A bande de rock improvisa no inglês e tenta um som da moda captado das ondas das FMs. O engraxate engraxa. O aposentado aposenta o trabalha e se dá ao direito de observar o que corre na frente dos olhos. Os poetas dos panfletos tentam achar apreciadores de poesias entre as pessoas que chegam e vão. A vendedora de balas oferece o seu produto para uma família de pai, mãe e dois filhos. Os bebedores do Calçadão bebem e espumam suor enquanto a vida passa a meio metro da mesa que ocupam. A funcionária do restaurante popular usa o guardanapo úmido para refrescar o rosto esquentado pelo calor da grelha de lanche prensado. O vendedor da sapataria traz caixas de sapatos e sabe que se agradar o freguês ganha mais uma comissão e engrossa a renda do mês. O desocupado desocupa finalmente um banco da praça e livra uma vaga para a senhorar que quer descansar os braços livrando as mãos do peso dos pacotes de compra. O trombadinha observa. O agente de trânsito faz de conta que não vê. O policial militar conversa lá longe. O segurança da loja tem certeza que fora do estabelecimento que o contrata não tem obrigação de atender nada e ninguém. O ambulante adverte a mulher sobre o perigo de assalto. A moça de saltos altos desequilibra-se na imperfeição do petit pavet do Calçadão. O senhor atrás dela xinga o prefeito. A senhor mais atrás concorda. O pipoqueiro olha e não diz nada. O vendedor vende. O engraxate engraxa. A criança corre atrás do pai. O carro ronca. A moto arranca. A vida anda.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Crônica - Uma gota de leite

O pano do carrinho de bebê é surrado como a vida acostumada a chibatadas tantos são os desencontros enfrentados pela mulher que o empurra. O pano do carrinho da mulher de expressão angustiada tem a estampa coberta por um encardido cor de poeira. O pano encardido da mulher de olhos estalados de tristeza acolhe uma criança de olhar ingênuo e puro.
A mulher de expressão angustiada e olhos estalados de tristeza tem vergonha de ter que empurrar o carrinho de pano sem estampa não porque o carrinho que acolhe a criança de olhar ingênuo e puro seja feio. A mulher que tem vergonha de andar com o carrinho de pano encardido sente-se constrangida de ter que pedir um trocado para comprar um leite para a criança. A mulher é mãe da criança acolhida pelo pano encardido do carrinho e pede com vergonha para matar a sua fome e a da filha de olhar puro.
Mãe e filha descem a calçada imperfeita da rua Piauí e cheiram o cheiro forte e fedido da carne estorricada na grelha do restaurante em frente. Mãe e filha sentem os impactos dos buracos na calçada esburacada da rua. Mãe e filha transpiram um suor de calor e cansaço na medida em que o carrinho de pano encardido desce aos solavancos e ela, a mulher, pede um trocado para ter a esperança de mais um pão no bar adiante. Mãe e filha descem a rua para viver mais um copo de leite.
A filha de cabelos loiros e cacheados não sabe porque a mãe tem que empurrar o carrinho de pano encardido que a acolher para buscar o seu leite. A filha de olhos puros, cabelos cacheados e bochechas avermelhadas não entende porque a mãe tem que se encher de coragem para pedir um trocado a quem passa por elas na descida da rua Piauí em frente de um restaurante que fede carne estorricada na grelha. A filha só sabe que terá leite para se alimentar quando as lágrimas do choro inundarem os seus olhos puros e ingênuos por causa da dor da fome.
A mãe de olhar angustiado é jovem e carrega num corpo maltratado a velhice de uma vida sofrida não se sabe por qual motivo. A mãe de olhar assustado tem medo de ter que ouvir de alguém a quem pede um trocado para o leite a desaforada resposta que deixa de ser só uma negativa e ganho o tom de uma ironia. A mãe do carrinho de pano encardido bem que gostaria de dizer que não usa a criança acolhida no carrinho que desce a Piauí aos solavancos para ganhar mais trocados e comprar mais leite. A mãe de cabelos loiros e ondulados, bochechas vermelhas e rosto tomado pelo suor só quer dar um passo a mais por uma gota de leite e uma vida carregada num carrinho de pano encardido, onde uma criança de olhar puro e ingênuo, bochechas vermelhas, cabelos loiros e cacheados, com o suor da mãe escorrendo sobre a toalha que tapa o sol, tenta enxergar o horizonte em frente bem diante do restaurante que fede carne queimada na grelha.
Cena londrinense, entre os solavancos na calçada da rua Piauí, na véspera de mais um Natal. Bom almoço Londrina!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Crônica - Setenta e três por cento

Ontem eu vi a família de dona Eurídice numa famosa loja de departamentos do Calçadão de Londrina. Ela, as duas filhas casadas, o moço ainda solteiro e dois netos formavam uma aglomeração num dos caixas do estabelecimento. Pagavam as compras e exigiam embrulho reforçado, pois a viagem de retorno à chácara onde moram, num distrito rural da Zona Sul, leva pelo menos uma hora. Sem contar que, no caminho, as crianças vão pedir sorvete de casquinha. O pastel do japonês, no começo do Calçadão, também não pode faltar.
Tive curiosidade de ver quanto a família gastou naquela loja de departamentos, mas isso seria indelicado. Pela quantidade de produtos, imaginei um valor considerável. Brinquedos, lençóis, pratos, toalhas, doces, produtos de higiene, CDs, canetas e muitas outras embalagens passaram pela registradora.
Dona Eurídice ainda mantém a tradição do interior de fazer compras, principalmente as de Natal, em um lance só. A vinda para Londrina é tida como um passeio, por isso todos acompanham a matriarca. As crianças, em situações de arte, recebem ameaças: "Quem não se comportar não vai para Londrina fazer compras..."
Esse costuma vem da família há anos, quando ela, ainda menina de pés no chão, esperava ansiosa pelo dia das compras enquanto os pais trabalhavam nas lavouras de café. A renda da pequena propriedade rural era anual. Mas além do café, cuja comercialização era fechada em momento oportuno, havia o frango, os porcos, o milho e as hortaliças, que tocadas no sistema de agricultura familiar rendiam trocados suficientes para a comida e os mantimentos.
A situação agora é outra. Dona Eurídice conseguiu aposentadoria. As duas filhas casadas moram no mesmo quintal e os maridos trabalham um na indústria e outro na construção civil. Não há mais renda da terra, o sustento depende de salários. O filho ainda solteiro de dona Eurídice estuda à noite e já trabalha no comércio local.
O recebimento do 13º engordou a renda e permitiu à família manter o hábito das compras de dezembro. Calçados e roupas foram comprados também, alguns itens bancados pelas financeiras que trabalhavam com as lojas. Para pagar as prestações a família terá que fazer ginástica durante os próximos 12 meses.
Dona Eurídice não tem nenhum parente beneficiado com bolsas do governo federal, como o família. Em hora de passeio, longe de mim perguntar se ela, as filhas e os genros votaram em Luiz Inácio Lula da Silva. Despropósito também indagar se as compras são possíveis hoje por causa do plano econômico do governo. Aliás, nem ela e nem qualquer outra pessoa da família participaram da pesquisa que deu a Lula 73% de aprovação.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Conto - Desiguais

Wilson, Milton e Hilson eram irmãos com um ano e pouco de diferença na idade. O mais velho era alto, magro e tinha os cabelos claros, puxando a família da mãe, formada por homens esguios. O segundo trazia o biotipo do pai, de troncos largos e estatura mediana cobertos por uma cabeleira lisa e densa de cor preta. O mais novo era a mistura das duas ramificações familiares. Alto, gordo e de cabelos castanhos claros, estalava olhos pretos abaixo das grossas linhas das sobrancelhas.
Eram também diferentes no comportamento. Wilson carregava um semblante alegre e espalhava simpatia. Conversava desinibido com qualquer pessoa e parecia dominar todos os assuntos. Era chegado a uma brincadeira nas conversas, mas tomava o cuidado de não causar constrangimento no interlocutor. Suas piadas eliminavam tocar em raça, cor, religião ou preferências.
Milton era fechado e raramente estampava um sorriso. Tendia a ser grosseiro e deselegante. Explosivo, provocava o afastamento das pessoas e nem no bar que frequentava após o expediente notava-se o fulano com algum amigo.
Hilson despontava como um grande intelectual. Nesta condição, as pessoas é que o evitavam, pois raramente o rapaz encontrava alguém disposto a uma retórica diante de tanta praticidade que a vida exigia. Analisava a política como um doutor, da mesma forma que conhecia as particularidades das artes, começando pela música e ultrapassando as grandes obras de pintores e escritores famosos.
Nas salas de aula, Hilson intimidava, sem propósito, até mesmo os professores. O perfil intelectual carimbava-o como um mala, pois não havia ninguém da idade dele disposto a trocar a mesa de um bar com assunto de mulher e futebol por um reservado da biblioteca destinado aos fóruns culturais.
As diferenças resultavam numa avaliação equivocada dos filhos por parte dos pais. Maria Joaquina tinha Wilson como o filho mais cativante. Aquele que perdia horas conversando com a mães sobre as questões corriqueiras da casa e da vizinhança. Para ela, Hilson, o mais novo, era um nariz empinado e tinha que aprender a ser gente. Milton, o do meio, "sabe-se lá por qual motivo cresceu essa figura intragável e chata", conforme repetia para as vizinhas.
Ernesto, o pai, enxergava Hilson como uma grande promessa. Acostumado com o trabalho pesado, ficava admirado com o conhecimento do filho. Milton, o do meio, era analisado com certo desdém: "É o jeitão dele, mas trabalha que nem um condenado e se ninguém encher o saco dele fica no seu canto". Wilson, o mais velho, "era um palhaço".
Anos se foram e cada um seguiu o seu rumo. Maria Joaquina virou avó de Rodrigo, filho de Milton, porque o destino afastou dela o sempre disposto Wilson, que foi servir o exército na capital e ficou por lá mesmo, onde arranjou mulher, emprego e casamento.
Ernesto, aposentado, decepcionou-se com Hilson, quando sentiu-se desprezado durante uma solenidade e imaginou que o filho tivesse vergonha dele. Sem saber como se aproximar de Milton, fechou-se na oficina improvisada no quintal e passava praticamente o dia consertando isso ou aquilo.
A vida deixava rastros enquanto o tempo seguia adiante. Que se lembre, a história começou com Maria Joaquina e Ernesto, que trouxeram Wilson, Milton e Hilson, que aumentaram a família com Rodrigo, depois Tiago, em seguida Camila e por último Adriana. Todos desiguais, se Joaquina tivesse ainda disposição para comparar os temperamentos de cada um e Ernesto coloca-se como homem de ter preferência por um ou outro filho ou neto.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Crônica - Um dia após o outro

Miúda, magérrima e com uma aparência serena, a velha senhora vende balas de segunda a sábado no Calçadão de Londrina. É provável que no domingo frequente uma feira livre ou outros locais de bom movimento de pessoas para oferecer o seu produto, acondicionado em uma caixa de papelão. Ocupa a escadaria de uma agência bancária. Imagina-se tratar de uma estratégia para fugir da concorrência nos semáforos de avenidas como a Higienópolis e a JK. Muito mais do que isso: a saída de um banco é um ponto promissor, pois entre os que entram e saem a todo o instante da agência, há de existir aqueles com trocados nos bolsos.
Por um real a pessoa que compra uma bala da mulher segue o seu destino com um pacotinho de pastilhas de hortelã ou um tablete de goma de mascar. Com menos o freguês passa por ela e leva algumas balas. Muitos que contribuem com ela praticam, na verdade, uma ação de solidariedade. A moeda ou a cédula não é para pagar um produto. É para levantar o caixa de uma senhora que não incomoda ninguém. Ao contrário de alguns outros ambulantes, ela não assedia. Às vezes nem chega a oferecer o seu produto. Sentada na escadaria do banco, em local que não atrapalha os clientes da agência, ela apenas observa a maioria das pessoas que passam.
Por mais de uma vez a vi num restaurante self service perto do banco. Sondei a possibilidade dela estar pagando pelo almoço, mas descobri que era gentileza do pessoal daquele estabelecimento. Ao vê-la na mesa junto com os demais fregueses do restaurante, senti um orgulho duplo. O de compartilhar com a velha senhora um estabelecimento e a de conhecer a maioria dos funcionários do lugar. De uma atitude exemplar de alguém deve ter surgido a iniciativa do almoço para a mulher. Idéia que foi assumida por toda a equipe com uma naturalidade que chega a ser estranha, se comparada com o que acontece na maioria dos restaurantes concorrentes, onde o ato de repartir o pão passa por uma série de restrições.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Crônica - Festival de absurdos

Chegam de Santa Catarina extraordinárias situações extraídas, infelizmente, de uma calamidade. Primeiro: quando as notícias sobre enchentes, enxurradas, desalojados e mortes ganharam o Brasil e o mundo, uma rede de TV a cabo entrevistou durante programa jornalístico um coordenador da Defesa Civil no Estado. Entre as perguntas, a mais incisiva foi sobre as causas da tragédia. O jornalista perguntou em português claro e com objetividade se a presença do homem havia causado influência. O coordenador respondeu que não. Na opinião do cidadão, a causa era o excesso de chuva. Ele até exemplificou que de tanta água a terra derretia que nem manteiga.
Segundo: autoridades estaduais e federais voaram com expressão de tristeza sobre as regiões atingidas. Depois anunciaram liberação de verbas para consertar os estragos. Seria ainda muito cedo, diante de tantas mortes, de achar os culpados e puní-los? Ou realmente o coordenador de Defesa Civil tem razão?
Terceiro: embora o desfecho da tragédia ainda esteja longe de acontecer, a mais espantosa notícia é sobre o desvio de donativos. É bom refrescar a memória: desabrigados e excluídos foram contidos quando tentaram apanhar objetos e alimentos de casas abandonadas e lojas. Foram chamados de saqueadores.
Sobre o primeiro absurdo, a Universidade Federal de Santa Catarina, quando procurada por uma revista séria, informou que a instituição dispõe de dezenas de estudos sobre a desvatação da Mata Atlântica em solo catarinense e sobre a invasão de áreas de risco. Nunca, porém, estas pesquisas interessaram as autoridades estaduais.
A presença do homem, por outro lado, é marcante na catástrofe, não tendo ninguém o direito de isentá-lo de culpa. Não somente o homem pobre, que sobe os morros com seus tijolos para construir uma moradia. No Norte catarinense, mansões são levantadas em clareiras que surgem da noite para o dia. Pertencentes aos mais abastados, estas edificações são regularizadas. Entre os municípios de Guaramirim e Jaraguá do Sul, perto de Joinville, o visitante toma conhecimento de uma aberração: uma dessas casas, com dois ou três pavimentos, tem um elevador que foi instalado para atender a um capricho do proprietário. Algo do tipo, "não moro em prédio mas subo e desço de elevador". É o cúmulo da jacusisse. Claro, sem querer ofender a espécie animal.
Quanto ao segundo absurdo, o único registro que se tem é que algumas das autoridades até chuparam cana no exercício de chorar pelas perdas. Aliás, perdas de que? Vidas? Produção agrícola? Casas? Prédios públicos? Riquezas? Infelizmente, perda de senso de responsabilidade. Aquele solo é um areião. Vira manteiga fácil. A ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sofreu muita pressão dos políticos catarinenses quando mexeu com a possibilidade de aumentar a área de preservação de mata ciliar nas margens de córregos, riachos, rios e etecetera.
O terceiro absurdo parece consequência de tudo o mais. Começa que o brasileiro age por impulso. Ele se mobiliza diante de pressão, inclusive gerada por tragédias. Às vezes esquece do vizinho do lado que passa fome. Mas arregaça as mangas até para ajudar, diante de campanhas nacionais, os flagelados de um país distante. Há também exageros: muitas vezes a mesma pessoa que leva para a igreja um saco com roupas usadas chama o miserável da rua em frente de vagabundo.
É um círculo vicioso que começa na doação e termina no beneficiado. A Lei do Gerson não saiu da moda. Se há verbas rechonchudas do governo para organizações não-governamentais fajutas, por que eu não posso levar o meu também? As famílias dos mortos e dos desabrigados é que se danem...

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Crônica - Amigo secreto

A quinta-feira prometia. A duas semanas do Natal, Clarice prepava-se para as compras. Na lista, a lembrança para a brincadeira do Amigo Oculto, que estava programada para a noite do dia seguinte, após o expediente na repartição. Desta vez Clarice havia pego um colega do departamento comercial. Conhecia-o pouco, por isso gastou semanas, desde o sorteio dos nomes, para chegar a um presente que, na sua concepção, agradaria o rapaz.
Pesquisou preferências entre os demais colegas e chegou a sondar DVDs de shows e filmes. Passou também por bancas de CDs de música, carteiras de couro, camisas sociais e camisetas mais esportivas. O rapaz, para Clarice, era uma incógnita. Por ser de um setor oposto ao seu, provavelmente, até o sorteio, ela somente tivesse reparado nela ligeiramente, em momentos de encontros nos corredores da empresa.
O amigo oculto de Clarice cumpria expediente com roupas sociais. A função exigia, pois ele visitava clientes e o gel nos cabelos puxados para traz era um ingrediente indispensável. Clarice imaginou que nunca havia visto o rapaz vestido esportivamente. Tênis, bermuda, mochila e camiseta, portanto, nem pensar.
A outra dúvida era sobre o perfil cultural do colega. Ouviria rock ou sertanejo? E se fosse um apreciador de clássicos? O que leria o presenteado? Paulo Coelho? Um best seller internacional? Livro de auto ajuda ou desses autores apropriados para quem trabalha com vendas, de oba-oba e vamos-que-vamos?
Fácil foi descobrir que o jovem era torcedor do Corinthians. Também soube que se ele não era fanático, por outro lado não permitia ironias sobre o seu time, que estampava inclusive um chaveiro adquirido numa feira popular em São Paulo.
Bastou isso para Clarice chegar a uma conclusão. O pacote de presente sério foi feito com uma camisa social, cor neutra, de tecido apropriado para o verão. Na avaliação de Clarice, o presente serviria, no mínimo, para o dia-a-dia profissional do colega. No pacote de sacanagem, Clarice mandou embrulhar um enorme urso de pelúcia preto e branco. Nele vestiu uma camiseta do Corinthians, dessas de lojas populares. No cartão Clarice escreveu: "Este fim de ano é especial para os corintianos. A contratação do fenômeno vai ajudar em muito os adversários. Nada mais justo que presenteá-lo com um boneco dele, que, na verdade, é tão semelhante e provavelmente muito mais ágil daquele que fará parte dos onze nos compromissos da equipe da qual faz parte".
Em troca, Clarice recebeu um par de chinelos Havaianas, decorado, mas de muito mal gosto. A amiga oculta de Clarice era do mesmo departamento e comprovou que pouca afinidade tinha com a colega de trabalho.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Crônica - Desconfiômetro

- Lendo um jornalzinho aí, Fulano?
Em caso de tolerância zero, a resposta seria:
- Não, Beltrano. Estou fazendo de conta. Na verdade, apenas tomo conta do jornal para que nenhum curioso o surrupie.
O mais irônico seria incisivo:
- Como assim Beltrano? Isto aqui não é um jornal. É um DVD. E eu sou um leitor óptico. Estou conferindo as trilhas de gravação.
Pessoas sem desconfiômetro não são raridade. Elas existem e costumam invadir locais restritos em horários impróprios.
Algumas aparecem silenciosamente. Imagine você trabalhando no pau da viola. O sujeito surge do nada e fica ali, te observando, sem falar nada? Você tem a impressão de ser vigiado. Por mais que se esforce, erra no procedimento, atrasa a pegada, se confunde. E o cara ali, encostado, sem abrir a boca, te olhando...
Outras preferem as perguntas imbecis:
- Tomando uma água???
E você lá, com o copo plástico na mão:
- Que nada, estou improvisando um peniquinho.
Há também os que se sentem reis nos locais que invadem. Contam piadas sem graça, fazem gracejos com as mulheres presentes, dão cantadas batidas e comportam-se como autoridades, do tipo: "Isso seria um marasmo não fosse eu aqui dando ânimo".
Também existem os que pretendem ser sérios e mal chegam iniciam conversa. Normalmente, apelam para um assunto relacionado ao meio e defendem suas teorias. Gritam, gesticulam, xingam e se acham os donos da verdade.
Perceberam? Estas pessoas estão presentes no nosso cotidiano aos montes. Às vezes, de tão acostumados a tê-los com tanta frequência, acabamos por incorporar algumas atitudes de gente sem desconfiômetro.
Cuidado.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Crônica - Quem paga a conta

Segundo semestre de 1982. Uma cerimônia conjunta no Ginásio de Esportes Moringão entrega os canudos para mais um grupo de novos profissionais formados pela Universidade Estadual de Londrina.
Deixei o serviço às dezoito e quarenta e cinco. Levo quinze minutos para chegar em casa, tomar um banho rápido e me enfiar dentro de uma calça jeans nova e de um paletó. O do casamento, na cor cinza, foi adaptado.
Sou um dos formandos do curso de Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo. Na verdade, dei-me ao sacrifício de participar da cerimônia paa evitar o ritual de formatura na Reitoria.
No momento dos discursos, vejo que valeu a pena. Entre tantas falas, uma me comove: lembra que somos alunos de uma instituição pública de ensino superior e que somos privilegiados, pois tantos tiveram que desistir da universidade. Concordo e choro. Complementa que temos um papel social importante: temos que usar a nossa força de trabalho pela sociedade. Na medida do possível, um dia por mês no vluntariado seria uma forma de agradecer àqueles que pagaram como nós os seus impostos mas não puderam frequentar a universidade.
Final do segundo semestre de 2008: um grupo de estudantes do curso de Medicina da mesma Universidade Estadual de Londrina comemora a formatura em um bar perto do Hospital Universitário. Depois de muitas cervejas, o grupo invade o estabelecimento, alguém solta um rojão no pátio e forma-se a algazarra. Um estudante teria dito que não teria mais que atender certo tipo de paciente.
O meu curso de jornalismo tinha um laboratório precário. O cuso de medicina tem um bom laboratório. O meu curso tinha um quadro de docentes barato. O curso dos estudantes da algazarra tem um corpo docente invejável. Tomara, tomara mesmo... que os estudantes tenham errado e admitam sua culpa. Se não conseguem reconhecer o custo que tiveram para sairem doutores, o que farão dentro de um consultório?

Crônica - Marcas...

Ela um dia foi à escola com uma calça feita de pano de saco. Descalça, pisou a terra fria do inverno forte que atingiu a pequena localidade onde morava, sem ao menos ter um agasalho adequado para enfrentar a baixa temperatura.
Menina loira, de cabelos cacheados e olhos verdes, parecia levada. A pobreza pouco influia nas suas brincadeiras com as irmãs e as amigas. Não é com rancor e nem com mágoa que admite já ter passado fome. Mas lembra que, adolescente, apanhou algodão nas lavouras da vizinhança para ajudar no sustento da família, acordando de madrugada e reservando tempo para o convívio com os colegas e os primeiros namoros.
Passagens da vida resgatadas com orgulho. Em alguns capítulos desse passado, a indignação cobre suavemente os relatos. Foi quando a discriminação social deu as caras e fez dela uma vítima dos rapazes que por cobiça quiseram transformá-la no objeto de seus desejos físicos. Ninguém a possuiu, mas a beleza daquela garota obrigou muito deles a blefarem. Era vantagem no grupo de amigos dizer que a tinham tido.
Hoje ela é mulher. Ama como alguém que dedicou a vida para encontrar alguém a quem pudesse entregar o seu amor. A calça de pano de saco e os pés descalços são compensados com uma vaidade sem exageros, mas sempre presente no jeito dela se vestir e se calçar. É mãe e carrega a aparência de uma mocinha.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Crônica - Só no ano que vem

(publicado no suplemento AN Jaraguá, de A Notícia, Santa Catarina, edição dos dias 31/12/2007-01/01/2008)

Em agosto a moça passou por inúmeras lojas, escritórios e indústrias perto do bairro onde mora e ouviu, repetidamente, uma resposta pronta para o seu pedido de emprego:- Só no final do ano vai abrir vaga...Então ela subiu ao centro, serpenteou ruas e dobrou esquinas para visitar outras lojas, escritórios e indústrias:- Capaz de ter alguma coisa no fim do ano...E chegou o período das possibilidades. A moça refez todo o trajeto: circundou contornos, pisou calçadas irregulares, ensaiou passos para frente e para trás na frente dos estabelecimentos e ouviu:- Só no ano que vem...Aliás, o ano que vem é de eleições. Mas antes tem carnaval. Por falar nisso, alguém pode informar como é que ficaram as CPIs e as CPMIs que tanto ocuparam os telejornais e as páginas das revistas e dos diários?A moça do emprego, que é fictícia, mas representa incontável número de brasileiros que há dias, semanas, meses e anos batalha por um bom emprego, enquanto se sujeita a qualquer vaga que surge para quebrar o galho, tem neste quase palavrão, desemprego, uma das principais causas dos calafrios, pesadelos, assombros em plena hora das refeições e do sono.O Brasil não é um país para projetos. Culpa nossa? Ou dos governantes e legisladores? Dizem alguns, com o risco de serem trucidados por críticas picantes, que é reflexo da cultura brasileira. Ou seja, somos péssimos. Há, no entanto, certa verdade nisso. Acontece que deixamos escapar por preguiça de análise as oportunidades de sermos cidadãos democráticos. E votamos, só como exemplo, em políticos que chegam em Brasília na tarde de terça e voltam às suas bases eleitorais no fim da manhã de quinta. Isso não é fruto de imaginação maldosa. É a verdade.É assim que exercitamos o nosso caminhar. Deixando, tocando em frente, dissimulando que não é da nossa conta. E a moça do emprego vai chegar nas lojas, nos escritórios e nas indústrias em janeiro, pedindo emprego. Vão responder:- Só depois do carnaval...Passada a folia, a moça refaz o trajeto e vai ouvir:- Só depois das eleições...Até lá o que haverá de concreto sobre as CPIs e as CPMIs? É capaz de a gente apoiar, por mais uma análise equivocada, alguém com o pé na lama. Aliás, como já fizemos. Pelo menos hoje temos que admitir: quanto erramos no exercício da democracia!

Crônica - Preconceito e desrespeito

- Oh perua, não sabe dirigir, não???
- A senhora está errada, tia...
Foram duas frases ouvidas no final da manhã de um dia destes em seguida ao baque de lata batendo. A primeira, além de indelicada, com flagrante conteúdo discriminatório. A segunda, aos gritos, com forte sotaque de ironia.
A cena do crime: avenida Higienópolis, na altura do número 200, região central de Londrina. A mulher mal havia saído do seu Citroen vermelho, modelo pequeno, quando ouviu os dois berros. Ainda conferia os estragos no paralama dianteiro esquerdo, com as mãos na cintura, enfiada num vestido preto de malha, comprimento na altura dos joelhos, quando foi atacada verbalmente por dois sujeitos que nada tinham a ver com o acidente. Ambos estavam na pista contrária. Um deles conduzia uma moto. O outro era daqueles que sapeiam e intrigam com os problemas alheios, provavelmente esquecendo os seus.
O outro veículo envolvido, um caminhão de refrigerantes, parou adiante e dele sairam o motorista e seu ajudante. Estimulados pelos dois intrometidos, ambos até ensaiaram impropérios contra a senhora, mas desistiram quando perceberam que ela os abordou com fineza.
A mulher errou sim. Estava estacionada e saiu sem perceber que o caminhão subia a avenida. Admitiu o erro e assumiu o prejuízo sem chamar o trânsito. Em menos de um minuto voltou ao Citroen e foi embora. Levou, além do prejuízo do paralama amassado, a indignação: merecia ser chamada de perua por causa de um erro no trânsito por alguém que nada teve a ver com o acidente? Teria que passar por aquilo, um homem, do outro lado da, ironizando sobre o seu erro?
Provavelmente não. Mas teve a infelicidade e encontrar no local do erro duas pessoas sem compreensão, com zero de educação e, pior: uma boa dose de inveja. É de se imaginar que o preconceito não foi contra a mulher que errou no trânsito. Foi contra a perua que se dá ao luxo de dirigir um Citroen no meio de um trânsito ocupado por gente sem noção de respeito ao próximo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Crônica - Presente de Natal

Antonia tem dois filhos e o terceiro está para chegar: um menino para se somar às duas meninas já em idade escolar. A previsão é de que João Manoel inicie 2009 num berço, mas há quem aposte, na família, que o bebê entrará nas estatísticas das crianças que nascem nos primeiros minutos do Ano Novo.
Vendedora de uma loja do Camelódromo, Antonia deve seguir as recomendações do médico e entrar de licença depois do Natal. Podia folgar um pouco antes, mas ela não quer perder as vendas do período.
O marido de Antonia é bancário e não detém um cargo de salário elevado. Escriturário, Cláudio chega a receber até menos do que a mulher, pois ela tem como engrossar a renda com as comissões sobre as vendas. Já ele nem hora extra tem. O banco em que Cláudio trabalha adota a participação nos resultados, mas este ano, segundo comentam seus superiores, deve sobrar pouco ou nada para os trabalhadores.
Antonia já fez a sua lista de compras para o final de ano. Os presentes serão modestos, pois o enxoval do menino que está vindo consumiu economias e fez o casal apelar para o crediário em algumas aquisições. Além das duas filhas, só ganharão lembranças este ano a mãe, o pai, a sogra, o sogro e dois afilhadinhos. Os demais que a perdoem, mas terão que ficar somente com o abraço.
Ontem, Antonia pode comemorar o início do funcionamento do comércio noturno com vendas que trarão boas comissões. Com o fixo de um salário mínimo mais a porcentagem sobre o que ela negocia, Antonia acredita que fecha o mês com cerca de oitocentos reais. O valor sobe para mais de mil reais com a segunda parte do décimo terceiro, já descontadas as contribuições. "É dinheiro", avalia a mulher.
Mais da metade disso será gasto na compra dos presentes das duas filhas meninas. Antonia deve investir cerca de seiscentos reais na entrada de um computador com impressora e monitor LCD. É um sonho das meninas ter um equipamento de informática. Depois, com o tempo, virão mais despesas para conectar a máquina ao mundo pela internet.
Mas este é outro capítulo, pois Antonia decidiu virar o ano com o sorriso de alegria no rosto das meninas e no dela próprio. "O resto a gente se aperta e vai dando pulinhos", comenta a mulher, após recalcular de novo o valor que pretende receber em dezembro entre o fixo e as comissões. Nem a barriga avantajada e o cansaço que sente nas pernas faz Antonia mudar de idéia. Ela nunca teve a oportunidade de mexer num teclado.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Conto - Dias de folga e desespero

Ontem Geraldo não foi trabalhar. Nem hoje, assim como fez anteontem e repete desde a terça-feira da semana retrasada. Geraldo saiu de casa às cinco da manhã e levou a marmita na bolsa de lona preta com a marca da associação de funcionários da funilaria onde estava empregado há doze anos. No caminho, trocou a linha de ônibus que o levaria à indústria por outra. Foi para o setor de oficinas, onde os estabelecimentos se enfileiram pela avenida e atendem de carros novos ainda com os manuais em dia até os velhos veículos carregados mais pela persistência dos seus proprietários do que pela potência de seus motores.
Geraldo não está de férias. Geraldo não tirou uns dias de folga. Geraldo não levou o seu carro para uma oficina. Geraldo não levou a marmita dentro da bolsa de lona preta por distração, já que nem ao trabalho ele está indo estes dias. Geraldo não é um trabalhador preguiçoso. Geraldo não é um homem de matar serviço.
É que Geraldo tinha um plano para ser finalizado neste fim de ano: vender o carro e dar entrada numa casa popular com um contrato de gaveta, aproveitando o sucesso do vizinho da rua de cima que conseguiu sair do bairro financiando um apartamento em região mais nobre da cidade. A casa da rua de cima o vizinho também comprou com contrato de gaveta e está repassando da mesma forma num preço que, se não é de camaradagem, está longe de ser um exagero.
Geraldo quer sair do aluguel e prometeu à mulher e aos filhos que deste ano não passa. A idéia de encerrar 2008 dentro da casa própria fez Geraldo vender o Passat 79 que ele mantinha como uma relíquia no quintal da casa alugada. Com o dinheiro do Passat e mais o décimo-terceiro dele e da mulher Geraldo paga o vizinho da rua de cima e transfere sua mudança para a nova moradia.
Geraldo não queria se desfazer do Passat 79. No passado, o carro já serviu para bicos que Geraldo se viu obrigado a fazer para manter a família numa fase de desemprego. O Passat estava quase novo, mas Geraldo o colocou na rua, com martelos, bancadas, alicates e chaves de fenda, para fazer funcionar panelas que as donas de casa já imaginavam imprestáveis. O ofício Geraldo aprendeu observando nas horas de folga um conhecido, dono de uma Kombi, que ganha a vida endireitando as panelas de pressão das famílias do bairro. Geraldo também sabe lidar com artesanato. Bom de comércio, ele até já vendeu banana usando o Passat 79.
O carro de Geraldo é um objeto de estimação. Mas a tentação da casa própria, somado ao brilho dos olhos da mulher quando a conversa é sobre a compra de uma moradia, fez Geraldo se desfazer do seu tesouro de quatro rodas. Geraldo não pegou preço justo na venda, mas está seguro que não deu o Passat 79 de graça. Além do mais, o carro vai ser a maior parte da entrada que Geraldo terá que dar ao dono da casa da rua de cima.
Geraldo fechou o negócio do carro na segunda-feira, depois de anunciar o Passat 79 no sábado e no domingo, aproveitando uma promoção do jornal da cidade nas páginas de classificados. Na noite daquele mesmo dia finalizou os valores com o vizinho da casa da rua de cima e marcou para entregar o dinheiro e receber a chave após às 18 horas de terça.
Na terça Geraldo foi trabalhar animado. Pegou no batente às oito. Mal aqueceu a linha de produção Geraldo e outros cinco foram chamados pela moça dos recursos humanos. A explicação que Geraldo recebeu, encolhido na cadeira diante de uma psicóloga de fala objetiva e áspera, foi de que a empresa sofria as consequências da crise mundial e tinha que enxugar o seu quadro de pessoal.
Geraldo nem teve ânimo para perguntar como havia sido feita a escolha dos demitidos. Geraldo apenas assentiu com a cabeça, assinou a papelada e saiu correndo. Foi procurar o vizinho da rua de cima, que já mora no apartamento do bairro mais nobre, para desfazer o negócio. Geraldo também correu atrás do comprador do Passat 79, que no passado já havia dado sustento para ele, a mulher e os dois filhos. Mas o homem que comprou o carro não quis saber de besteira e disse que negócio era negócio.
Geraldo bem que podia dar entrada na casa com parte do dinheiro da rescisão. Mas Geraldo ficou com medo, pensou nas crises passadas, imaginou-se um ninguém sem o Passat 79 e sem um emprego. Preferiu abrir mão do sonho da casa própria, que era um sonho dele, da mulher e dos filhos. Decidiu economizar o dinheiro do acerto para evitar contratempos futuros. Geraldo não sabe qual é a origem da crise mundial. Geraldo só sabe que Obama foi eleito e deve acertar a situação do país que vai governar. Geraldo ouve falar que acertando lá também se acerta aqui. Geraldo, agora desempregado, tenta vaga na oficina de um conhecido, pois o Passat deu a ele, além do prazer de um carro bem cuidado e o sustento em períodos de desespero, o conhecimento da mecânica.
Geraldo, vítima da crise imobiliária lá de longe, abriu mão de comprar uma casa. Geraldo ainda não falou para a mulher e os filhos que deixou de fechar negócio com o vizinho da rua de cima. Geraldo nem disse à família que está desempregado desde terça-feira da semana passada. Geraldo prefere, depois da contratação, dizer a todos que conseguiu mudar de emprego.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Crônica - Só até o meio da estrada

Quantos foram os telefonemas no meio da madrugada? Atormentada pela insônia, ela ligava e pedia um ombro. Dizia ter medo de dormir e não acordar mais. Reclamava de pesadelos durante as breves adormecidas. Jurava que só ele era capaz de tranquilizá-la.
Ele ouvia. Procurava realmente acalmá-la relembrando epsódios turbulentos da vida de ambos. Dizia a ela que tudo não passava de reação. O estresse mexia com o psicológico, que por sua vez interferia no sono e resultava em pesadelos.
Longe de ser um profissional da psicologia, ele se baseava na razão para usar tais argumentos. Redemoinhos passados realmente pertubavam. Vez ou outra, seus efeitos pareciam se tornar assustadoramente presentes. Ela, constantemente, reclamava sonhar com a morte. Dizia que todas as mortes que havia lamentado nos últimos tempos haviam sidos previstos em seus pesadelos. Pedia para ele se cuidar.
Ele, então, improvisava poesias para encerrar a conversa negativa. Inspirava-se no amor entre ambos e retomava o pacto que haviam selado há anos: quaisquer que fossem os obstáculos, caminhariam por aquela estrada criada no imaginários dos românticos, de terra batida, com moitas de capim e ervas nas beiradas.
Um conduziria o outro, até chegarem ao topo, onde encontrariam aos lado de uma cabana aconchegante uma mina de água pura para matar a sede. Acomodados ali, aguardariam os dias de chuva para escrever no vidro da janela os seus nomes dentro de um coração.
Houve um tempo em que ambos subiram juntos a estrada do imaginário. Entre troca de beijos e afagos, juras de amor romperam o silêncio da mata próxima daquele sonhado lugar. Tinham a certeza de que chegariam no topo, tamanha era a vontade de beberem da água fresca e descansarem depois no canto mais acolhedor da cabana.
Não fosse o destino, conseguiriam até aguardar pelo período das chuvas. No vidro escreveriam uma história de muitos sentimentos e luta. Foi um momento desses de indecisão que cada optou por uma bifurcação da estrada. Ele, por motivos profissionais, partiu primeiro e passou a ficar cada vez mais só. Ela ficou, mas cresceu em outros interesses e esqueceu da estrada, da cabana e da água límpida da mina. Disse adeus e se foi para o outro lado, onde, provavelmente, sonhará com outras temporadas de amor.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Crônica - Oito anos

O sorvete na mesa do canto do self service há muito descongelou. Houve um tempo em que a guloseima era saboreada. Entre conversas sobre o cotidiano e definição de planos, as colheres de plástico absorviam a massa gelada. Olhares de solidariedade e de afeição faziam o ambiente melhor.
Depois do exagero, perguntado-se de que forma a balança da farmácia iria registrar aquele momento de gula, o destino era o caminho de casa. Às vezes, no início do anoitecer. Outras, já tarde, muito depois do passeio pelos corredores do shopping para descontrair, relaxar e queimar gordura.
Havia afinididade nas idas e vindas, nas paradas diante das vitrines, na subida pela escada rolante. Até chegar ao estacionamento, confidências e juras. Conjugava-se o mesmo verbo e os projetos apontavam para o mesmo rumo.
Quase perfeição também na idéia de trilhar caminho que levasse para o eterno. O sentimento era do tamanho do infinito. A alegria transmitia-se no olhar brilhante e esperançoso.
Foi-se o tempo. A estrada agora é de duas vias. Um vai, outro vem. Acabaram-se as juras e as afinidades andam na contramão. A paciência parece nunca ter existido. A solidariedade virou discurso. O sorvete gelou. Oito anos se passaram.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Crônica - Alguém me percebe

Uma lona gasta e o pé se faz impotente. O baque seco transforma o medo em uma mistura de raiva e alivio por sentir que as mãos mexem, os olhos enxergam, os ouvidos escutam, os pés pisam, a cabeça pensa. Tudo, a princípio, funciona, apesar da batida acelerada do coração. O que sobra depois de alguns minutos é a angústia.
A cena de um acidente de trânsito é apenas ilustrativa. Aliás, uma maneira extrema e estranha de entender como alguém se sente diante de um impacto. Comparação provocativa, para reforçar que a lesão causada por um choque físico às vezes é menos nociva do que aquela oriunda de um acidente psicológico.
Mas cura-se a fratura exposta com um curativo. Com o tempo, ela cicatriza e deixa um rasgo na pele, que vai diminuindo e um dia acaba. Quando muito, o que resta é uma mancha, que anos depois será referência de um período da vida. Um curioso há de perguntar qual foi a causa daquele sinal.
Não é o que ocorre com a cicatriz da alma. Esta persiste e em determinados momentos da vida parece aumentar de tamanho. Provoca dores forte na solidão. Invoca a mágoa e a revolta. Dilacera e atormenta, como se tivesse surgido ali no coração para incomodar.
Pensa-se que ela não possa ser combatida. Há, porém, remédios que amenizam seus inchaços. Recebi recentemente um medicamento desse tipo. Veio num PPS, no meio de tantas outras mensagens que me chegam diariamente pela internet.
Chama-se Violino e conta a história de Paganini, que durante um concerto não se abalou com as cordas partidas do instrumento. Tocou com maestria até quando somente restava a última corda, arrancando, além da música, admiração e aplausos. O texto pede que o exemplo do gênio do violino sirva como lição: enquanto houver uma corda, ainda é possível fazer um concerto.
A pessoa que me enviou a mensagem diz acreditar na minha capacidade profissional. E pede que eu persista, pois sempre terei uma última corda à disposição e a partir dela saberei construir aquilo que persigo há anos: uma carreira, que não seja somente de sucessos financeiros, mas me dê motivo de orgulho pela ética aplicada junto com cada tijolo que a sustenta.
Foi então que escorei o corpo no ânimo e prometi executar a melodia da minha vida com a última corda. Em todos os concertos, não me esquecerei de Arline, aquela que me repassou a mensagem.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Crônica - Inconstância

Vidinha! Descia chuva, águas passavam e o cotidiano se alongava quando o sol não aparecia. Igual aos dias brancos, de luz solar forte e preguiça, quando a rotina estonteava.
- Do que conversar hoje, pergunta ela.
- De quem falar bem, emendava ele.
- Ou mal, cutucava ela com jeito de deboche.
Era como se acordassem todos os dias nas cadeiras de balanço espalhadas na varanda. E nela passassem as horas, entrassem a noite, dormissem de madrugada, apenas se espreguiçando quando o corpo pedisse um movimento leve que fosse.
Assim, tinham muito o que conversar. Criticavam tudo e todos. Nada era bom o suficiente. Se fulano fazia, merecia considerações preconceituosas. Se não fazia, era tido como preguiçoso, incapaz.
Da mesma forma, mudavam muito rapidamente o conceito sobre as pessoas que os cercavam. Ontem sicrano era ruim, porque disse aquilo. Hoje era bom, porque teria dito isso. Amanhã poderia ser pior, caso dissesse ou fizesse algo que não fosse do agrado deles. Ou muito melhor, se ocorresse o contrário.
Isso de segunda a segunda, do dia primeiro ao último, às vezes 30, outras vezes 31, ou 28 ou 29 quando fevereiro. Uns dias acordavam às 5, outros às 6. Em tardes quentes, após o almoço, cochilavam mais tempo e colhiam menos descanso por culpa do desconforto. Mas sob as nuvens anunciando chuva no verão, desmaiavam aos roncos. No inverno, mal fechavam os olhos enquanto as últimas folhas do outono teimavam em sujar o quintal.
Era uma vidinha, do primeiro de janeiro ao 31 de dezembro. Um cotidiano de rotina teimosa no costume de acordar, esperar o dia passar, entrar noite adentro na mesmice de todos os dias e dormir.
Tinham que ter algo diferente para enfrentar essa situação. Havia necessidade de uma inconstância. Então falavam das pessoas e mudavam os conceitos sob os alheios de hora para outra, de acordo com a velocidade dos ponteiros do relógio de parede com propaganda de um analgésico.
Nuns dias fulano era bom. Noutros era o capeta.
Inconstância...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Crônica - O diálogo das músicas

Foram quatros CDs de músicas emprestados em troca de apenas três. Um número par por pura coincidência contra o ímpar preocupante que leva à obrigação de mais um, para ficar igual. Conversa estranha esta. Porque, na verdade, eles se conversam através das canções. Um homem e uma mulher com os mesmos ouvidos e os olhos iguais para enxergar o mundo através da poesia. É o mesmo que dizer, eles tem almas gêmeas.
Dela ele sabe pouco, se para isso fosse necessário muito mais que o diálogo dos sons. Dele, provavelmente, ela muito menos conhece, se levado em conta que o cotidiano é de verbos diretos e adjetivos perturbadores. Há de se considerar, entretanto, que ambos, nessa conversa melodiosa, podem almejar um do outro. O equívoco pode estar nesse ponto, onde ritmos iguais batem em corações supostamente diferentes.
Ele gosta das canções que ela ouve. Ela mostra, com um delicado consentimento, querer ouvir as mesmas músicas que ele ouve. Ambos conversam assim e se dão por felizes. Eles se completam, cada um no seu canto, com as melodias que tocam em equipamentos e ambientes diferentes, mas resvalam em gostos iguais que batem de leve no frágil fio que separa a simples afinidade de um bem querer maior.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Crônica - Sanfona, banqueta e caixa de papelão

Os olhos daquele homem não enxergam as pessoas que passam, embora ele tenha uma visão praticamente perfeita. Embaçados pelo receio do seu espetáculo não causar agrado, os olhos do homem preferem visualizar apenas a penumbra dos que chegam e vão diariamente, muitos a trabalho, outros a estudo e uma minoria a lazer. Mas o coração daquele homem é capaz de ver aqueles que entendem a sua arte e a sua necessidade e, por isso, retribuem com uma parada, mesmo rápida, e até uma moeda.
O homem é um músico, profissão que ele nunca na vida havia imaginado exercer. O seu boné surrado, acima dos cabelos grisalhos que entornam a cabeça de onde um rosto de expressão melancólica se sobressai, indica que ele era alguém acostumado a enfrentar o sol. Os botinões e as calças de brim cáqui, complementados pelo camisão xadrez em tom claro, dão ao homem o aspecto de quem trabalhou na roça por anos a fio.
As mangas curtas denunciam a pele grossa dos braços. Fosse possível observar as palmas das mãos, é provável que se destacariam os calos provocados pelos cabos dos enxadões. As unhas, porém, ficam visíveis e escancaram as marcas das atividades braçais. Encardidas, não escondem a lida com a terra num batidão de sol a sol, sem folga nos feriados e fins de semana em épocas de plantio ou colheita. A timidez manifestada no jeito humilde de se apresentar reforça a suspeita de que aquele homem hoje está num lugar que não gostaria de estar.
Então por que ele se dá ao sacrifício de ocupar aquele palco improvisado sob a sombra de um edifício do centro de Londrina para tocar a sanfona de manhã até o fim da tarde, sem intervalo para uma refeição no almoço? Sabe-se que ele chega ao local junto com o horário da abertura do comércio. Traz, além da sanfona, uma banqueta de madeira e uma caixa de papelão vazia. Aliás, de dentro dela somente se vê um pedaço de papel amassado com o manuscrito: "Ajude um artista". Quem o entende percebe também entre a bagagem que o homem carrega a habilidade dos dedos das mãos que dedilham o instrumento, a sensibilidade dos ouvidos e a generosidade do coração, que premia os saudosistas com canções muito raramente encontradas nos meios modernos de reprodução.
Há quem imagine que o homem um dia se cansou da monotonia dos campos, mais por força do pouco dinheiro que a terra lhe dava para sustentar a família. Então mudou-se para a cidade e viu-se desempregado. Resolveu virar artista para ganhar moedas com a música que sai da sua sanfona. Outros apostam que o homem decidiu trocar a dureza do trabalho braçal pela poesia das músicas que invadem o agitado e frio centro da metrópole. As moedas, depositadas na caixa vazia de sapatos, seriam apenas uma contribuição.
Mas os que enxergam além das melodias dizem sem rodeios: o homem é um trabalhador e tem uma família para sustentar num meio que lhe é hostil. Sem onde usar suas mãos para arar a terra e colher os frutos, faz do que era o seu passatempo um meio de garantir a mesa com os donativos que raramente cobrem o fundo da caixa de papelão. Hoje o homem é um artista do Calçadão de Londrina. Divide o palco com tantos outros que engolem fogo, batem a zabumba, pintam, bordam e tecem os pedaços da vida num mágico cotidiano de ilusões e tristezas.

Crônica - A Lua é nossa

Eu disse que a Lua era minha quando ela estava cheia, sem saber que em vários pontos do Universo muitas outras pessoas a cobiçavam. Tomei posse dela vendo-a inatingível e distante, como se adquirisse um quadro para ser posto num lugar alto de uma parede inacessível, para evitar que alguém o tocasse.
Ignorei o fato dela desaparecer ao clarear do dia. Considerei que ela voltaria e seria minha, sempre avermelhada e gigante. Esqueci propositalmente as noites e as madrugadas de tempestades, quando a Lua ficaria escondida pelas nuvens. Ou alimentei a fantasia de que ela continuaria sendo minha, mesmo acima das chuvas e ainda mais longe de mim.
Foi assim, nesse ímpeto, quando a Lua se mostrava cheia, que eu resolvi te presentear com ela. Entreguei-a toda para você e disse: "A Lua é nossa". Percebi a sua alegria mas tive dúvidas: a Lua, vermelha e grande, causaria em você o mesmo fascínio que em mim? Contentei-me, por fim, em admitir para mim mesmo que a Lua, cheia, sempre inspira os românticos.
Então apostei o nosso amor na Lua grande, cheia e vermelha. Acompanhei-a dias após dia, tendo-a como elemento para mensurar a intensidade dos nossos beijos, o calor dos nossos afagos, o arfar dos nossos peitos. Fiz da nossa Lua vermelha e grande a nossa luz e abençoei a insônia.
Até que um dia ela não voltou. A Lua, cheia, vermelha e grande, se escondeu atrás do oculto do seu ciclo, de ir e vir de acordo com o seu movimento, sem se importar com a velocidade do estouro das labaredas do amor. Sorte que o coração resistiu e esperou pelo retorno dela, que chegou de novo cheia, vermelha e grande, ao ponto de mais uma vez eu te dizer: "A Lua é nossa".

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Conto - Guerra das almofadas

Éramos três crianças e nada do que fazíamos naqueles momentos tinha importåncia para o nosso futuro. Vivíamos o nosso tempo, num mundo que só a nós pertencia e nos contentava, e mesmo quando colocávamo-nos a meditar sobre o amanhã os nossos planos eram paupáveis, possíveis de serem contornados pela imaginação, tão singelos pareciam.
Mamãe tinha um rosto de menina. Seus cabelos longos caiam sobre os ombros e emolduravam o rosto moreno. Era uma mocinha apaixonada pela família - eu, Mara e papai -, e embora muito criança, eu já experimentava um leve sentimento de ciúme. Dos momentos, por exemplo, que ela se aproveitava das nossas distrações para roubar um beijo de papai. Ou de quando se entregava a Mara e eu me sentia abandonada no canto do sofá, até que ela viesse, seus braços abertos, para me compensar com um abraço e muitos beijos que eu fazia de conta me incomodar.
Os dias eram iguais, fosse domingo ou quinta-feira. Mas as nossas expectativas quanto ao próximo minuto, ao o que estava por acontecer, sempre se renovava. Porque os nossos instantes sempre eram de surpresas. Um novo abraço de mamãe nunca se parecia com o de antes, cada beijo tocava no meu rosto e se abrigava no meu coração com uma intensidade incomparável. Ainda assim, tínhamos nas tardes dos sábado um evento diferente, longe da nossa gostosa rotina de esperar, de segunda à sexta, pela chegada de mamåe da escola onde lecionava.
Íamos nós três no final do dia para a chácara da comunidade religiosa a qual meus pais pertenciam. Havia um alojamento reservado para nós e invariavelmente, após o jantar, corríamos para nos acomodarmos. Papai, obrigado a cumprir plantão devido a sua atividade profissional, raramente nos acompanhava naquelas oportunidades. Então o mundo e o momento eram das três mulheres da casa. Meninas, que não falavam das coisas das mulheres, nem da moda, nem dos ídolos da televisão.
Éramos três crianças, que sob o comando de uma de nós, seja com um olhar, fosse com um gesto, nos entregávamos a uma guerra sem vencedor e vencidos. Uma guerra de amor,com as nossas almofadas acertando os corações uma da outra. Assim perdíamos horas e ganhavamos no amor. Riamos uma das outras, abominavamos ataques de surpresas. Na verdade, perder era ser compensada por mamãe com aquilo que ela tinha de mais sublime, o amor. Então, em certo momento, tomadas pelo sono, deixávamo-nos vencer.
Eu ainda olho para o passado e tento buscar nas lembranças, que parecem querer me ferir, as glórias daquelas guerras. Mas percebo que as batalhas são outras. E a minha guerra já não premia todos os lutadores com provas de paixão e amor manifestadas em abraços e beijos.
Mamãe ainda conserva o rosto de menina, mas seus olhos, mesmo quando sorriem, denunciam tristeza, pois papai se foi. Mara, na sua adolescência, parece querer cuidar de mim. Penso que eu é que deveria baixar a guarda das perdas que acumulo na alma, como a da súbita ida de papai, para devolver a Mara e a mamãe as almofadas que fizeram a nossa guerra e nos tornaram felizes mesmo nas nossas derrotas. Sim, porque naquelas batalhas da infåncia nunca perdemos e nunca ganhamos, apenas solidificamos a nossa vida com atitudes que nos ensinaram a amar.
No entanto, alinho-me como a guerreira que não quer sucumbir, mas não estende os braços para abraçar as parceiras de todas as minhas batalhas, Mara e mamâe.
E como eu tenho tentado. Mas só consigo seguir o olhar triste de mamãe e a carência de Mara, sem reagir, sem abrir o meu peito para brincar a nossa guerra das almofadas.

Crônica - Idolatria

Era um Deus para aquele grupo de pessoas. Creditavam a ele uma inteligência fora do comum. Nas pequenas e grandes discussões, qualquer que fosse o tema, cabia a ele a última palavra. Uma sumidade envolta em uma manta transparente, a aura invisível rodeando a cabeça de cabelos ralos, e as asas, inatingíveis, formando um delta, compunham a figura do endeusado.
É verdade, o homem tinha lá os seus dotes. Hábil na matemática, mostrava-se imbatível nas coisas da economia, assunto que debatia sem ser interrompido tamanho era o conhecimento que tinha. Os fiéis escudeiros que o mantinham encouraçado chegavam a comemorar com orgasmos mentais as elucubrações daquele todo poderoso. Rodeavam-no como se faz com os espécimes que são raros. Evitavam contrapor idéias. No máximo, sugeriam algo aqui ou ali.
O que aquela gente não sabia era que aquele homem não deixava de ser um comum, como qualquer outro ser humano da face da terra. Ele não tinha o perfil de um gênio, desses tantos que aparecem no mundo de uma hora para outra, com idéias, ações e realizações. O endeusado não passava de um ídolo, pois faltava-lhe um elemento que é essencial na formulação de um grande ser: senso de humanidade.
Sem humanidade, o homem não tinha senso de justiça. Faltando-lhe justiça, ele não enxergava a vida que corria além das janelas do seu automóvel, refrescado no verão com um ar condicionado. Sua bondade era falsa, pois pouco ou nada acrescentava para o beneficiado. Sua voz soava falsa e inconsistente. Seu sorriso intimidava devido ao tom de ironia.
Ainda assim havia no grupo aqueles que acreditavam: "O homem não defeca, pois ele é um Deus!" Fisiologismo era, portanto, uma palavra quase que proíbida para aquela gente, quando o tema era o endeusado. "Ele não arrota como nós, pois seu organismo é puro!"
E quase ninguém viu aquele homem arcado, um dedo em riste apontado para o seu rosto, num gesto de ameaça e intimidação que nenhum Deus, e muito menos um gênio, mereceriam. O homem acuado, sem a manta, sem aura e sem asas, era apenas o projeto de um ídolo torturado por quem o fez e o lançou ao mundo com a marca de um herói. De barro.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Crônica - Reflexos, pessoas e reflexões

(texto publicado no livro Jaraguá em Crônicas, abril de 2007, Editora Design, Jaraguá do Sul)

O espelho do vidro da loja do Calçadão, na Marechal, reflete marias e joãos que se miram nas possibilidades de ir e voltar. Ou, simplesmente, ficar. Para ver outras marias e outros joãos gravados nos espelhos das lojas da Marechal.
Luzia se mira, nem disfarça a curiosidade de se ver, retratada na vitrine de calçados, jóias e confecções. Andasse por ali como caminha a mulher que segue à frente, ou o rapaz que se foi lá atrás após cruzar com ela no momento em que o ciclista fechou, apressado, o ângulo da vista de ambos que pretendiam se enxergar, suas imagens um na retina dos olhos do outro, Luzia chegaria a um lugar. Mas ela não anda. Simplesmente desliza e a sua altivez a acompanha, nos vidros das casas de bijuterias e produtos de 1,99. Luzia vai a outro lugar, algum lugar, onde seu sonho a leva ladeada pelos reflexos que a perseguem de vitrine em vitrine, e a sombra que o sol faz ao bater e resvalar por seu corpo esbelto.
O espelho das águas fixa na lâmina turbulenta árvores, pontas de prédios, manchas de nuvens, passos de pessoas e vaivém de automóveis, das bordas de um lado até o meio do Rio Itapocu, da beira do outro lado até o vão da ponte que atravessa para lá. Ou trás para cá. Enquanto as folhas e as impurezas descem empurradas pela correnteza, sem duplicar imagens por fazerem parte, como objetos sólidos, do líquido que brilha e vira espelho.
Antônio se olha no espelho d’água, espanta-se com o rosto magro, cavanhaque por fazer, bigode sem aparo, cicatriz na cara pouco abaixo da bochecha direita. Água marrom a que desce o rio, junto segue um galho, uma garrafa pet, monte de folhas de mil vegetais, tufos de capim, embalagens de plástico, capa de caderno, preservativos e o retrato da vida, nas impurezas do líquido que vai. Ou traz um vento leve e rasteiro na altura do peito do pescador de manhã sonolenta, agachado à beira do Itapocu, vendo a água ir, o vento vir, enquanto se mira no espelho do rio e faz conta de cabeça para saber a quantos dias do fim das férias está a pescar sem querer saber de voltar ao trabalho, para enrolar fio de cobre e fazer motor, costurar jeans e fabricar moda, encher tanque de carro no posto a cem metros de casa e girar a vida que vai. E volta, sempre no mesmo lugar, na linha de produção da indústria que Antônio quer trocar por outro chão de fábrica, outro horário de trabalho, outro salário. Que permita outra casa para morar, outros sapatos para usar, outra moto para andar, diferente vida, não refletida com cara de angústia no espelho do rio que vai, mas sempre volta, trazendo a perspectiva de uma mudança que nunca chega, montada no lombo da incerteza que amarra, da dúvida que trava, do medo que barra, do desânimo que faz Antônio sempre voltar ao mesmo rio para refletir e se espelhar na lâmina turva da água que reflete marias e joãos, luzias, antônios e tantos mais.
O espelho da janela do edifício central, na Reinoldo Rau, retrata Débora, olhos cansados, visão distante, pensamento disperso no pão que comeu ontem no jantar, na refeição que almoçará hoje logo adiante, daqui a pouco, na mesa do shopping. Ou no bar ali em frente, corpo encostado no balcão de vidro que expõe doces, pacotes de bolacha, balas, chicletes e a martelante sensação de abandono e solidão diante do rosto sem expressão da garçonete, que olha e pergunta se vai o de sempre.
Testa encostada na película que corta o sol, Débora adia o trabalho para daqui a instantes, logo mais, quando o reflexo do pensamento deixar a imagem do último namorado, solícito e amável enquanto durou a paixão espelhada na mesa de mármore da casa noturna, sob luz fosca, música ambiente, clima de amor e mais uma história de desilusão. À frente, na linha da visão, Débora enxerga o topo do prédio distante, o telhado da casa em frente, a montanha instransponível enquanto o coração emperra batidas descompassadas de vontade de ir adiante, além do pé do morro que cerca o vale e dá a impressão de inércia para quem quer ir, mas não arreda os pés do chão de cerâmica clara brilhante do escritório, que reflete os sentimentos de uma mulher que só fica porque espera acender a luz do abajur a qualquer hora para ver retratada no espelho da peça de mogno, outra vez, a paixão que se foi e quem sabe volta até o intervalo do próximo almoço, talvez na janta, provavelmente à noite, depois da novela, da aula de inglês, da reunião do condomínio, do lanche com biscoito água e sal.
O espelho da lata dos carros reflete marias, joãos, luzias, antônios, déboras, marcos, elaines, cristinas, fernandas, possibilidades, ilusões, tristezas, felicidades, decepções, esperanças e projetos diferentes. No retrovisor, vidas percorrem o centro, atravessam os bairros, vencem solavancos da transposição da linha férrea, encurtam distâncias, levam e trazem, vão e chegam, às vezes ficam, outras não.
Espelhos, retratos, reflexos, imagens, projetos e sensações além das miragens nas vitrines, balcões, lâmina d’água, janelas, latas de carros. Era uma vez, no meio do vale, um dia no coração de cada pessoa.

Crônica - Um crime nada perfeito

"Tanta gente faz isso, por que é que eu não posso?" A dúvida assanhava a mulher, dona de uma lábia invejável. Na conversa, ela derrubava ministro, se tivesse o poder de chegar perto da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Não tinha, mas imaginava ter. Dizia-se uma líder comunitária expressiva, embora mal conseguisse reunir os vizinhos para conversas sobre a rua onde morava, o estado precário do centro comunitário, o atendimento no posto de saúde. É que, normalmente, todas as bandeiras que desfraldava estampavam, lá no fundo dos letreiros algum tipo de interesse flagrantemente pessoal. Assim, mesmo os que participavam desses eventuais encontros olhavam de rabo de olho os demais participantes e conferiam a forma como cada um aceitava as colocações feitas por ela.
Em períodos eleitorais, a mulher frequentava os gabinetes dos candidatos para oferecer os seus serviços. Diante dos nobres postulantes a um cargo público, ela usava toda a sua capacidade de persuadir. Contava vantagens, enumerava conquistas nunca comprovadas, garantia um bom retorno diante de um preço cobrado nada promocional:
- Eu trago para o senhor cinco mil votos...
- E quanto me custa esses votos?
- Olha, o senhor não vai se arrepender. Faço durante a campanha dez reuniões com duzentos participantes cada.
- Mas então, quanto é que você me cobra?
- Além das reuniões, eu monto uma equipe de vinte mulheres para percorrer trinta bairros, batendo de porta em porta...
- Sim, mas os cinco mil votos, mais as dez reuniões com duzentas pessoas e mais as vinte mulheres de porta em porta nos trinta bairros... quanto vai dar?
- Tem cinco dessas mulheres que, olha, cada uma traz para você pelo menos cem votos. E tem também...
- Calma, eu sei que é tudo isso que você me traz, mas quero saber quanto você quer.
Acostumado a esse tipo de barganha, o candidato normalmente cedia aos pedidos da mulher, embora acreditando em apenas vinte por cento ou pouco mais do prometido. Para ele, havia a necessidade de manter perto pessoas que oferecessem supostos retornos. Havia o risco de um adversário levá-la. Por isso, a estratégia era trazer para o time os chamados profissionais das campanhas políticas. Estes eram misturados aos voluntários e ao pessoal pago de acordo com a qualificação profissional, que recebiam pouco e não pesavam no orçamento da campanha.
- Mas então, você tem um preço para participar da minha campanha?
- Pois é, doutor. Além do preço temos que negociar para depois da posse. O senhor sabe que nada aqui na terra cai do céu, né? Tudo tem um custo...
- E como sei. Mas para fechar preciso saber...
- Então... não vai te custar muito. Depois de eleito o senhor recupera tudo e muito mais na primeira canetada.
- Assim espero, vou investir muito na eleição. Quanto?
- Vamos fazer um real por cada um dos cinco mil votos. Isso é o meu serviço. Por cada uma das vinte mulheres o doutor paga uns dois salários mínimos, livres de ônibus e de marmitex...
- Vai ficar muito pesado, minha cara...
- Espera aí. O doutor quer se eleger?
- Quero, mas como é que você me garante estes votos?
- Ah, pergunte lá para o fulano. Trabalhei com ele na eleição passada. Coincidência ou não, agora ele é o seu principal adversário...
- Então vamos lá. O que mais?
- Cada uma das vinte reuniões tem um preço. Precisa de umas coisinhas para comer e chamar a atenção dos convidados. Uns quinhentos reais dá apertado, mas se faz uma reunião.
- Tudo bem, o que você pretende no futuro?
- Eu nadinha. Mas o meu marido está há dois anos vivendo de bico. A minha filha precisa de um emprego. Tem uma das mulheres da equipe de rua que esta precisa de uma atenção especial. Precisa ser muito bem aproveitada. O doutor vai ter que dar uma vaguinha para ela. E para mim, o doutor sabe que sempre gostei de lidar com gente, sou uma líder comunitária respeitada... queria uma coisinha simples, uma diretoria, por exemplo...
- Isso a gente tem que ver depois, você sabe que tem as coligações, que levam a maioria das vagas do primeiro, segundo e terceiro escalões.
- Mas o doutor tem que me dar uma garantia. O fulano está me telefonando todo o dia em casa para ver se eu fecho com ele...
- Está certo, depois de eleito você me traz essa listinha de pessoas...
Foram menos de dois meses de campanha no primeiro turno. O candidato da mulher ficou para o segundo turno e pagou pelos serviços dela. Nos cerca de quinze dias seguintes, preparatórios para o segundo turno, a negociação foi refeita, com um valor majorado e condições mais tentadoras. O adversário era aquele que a mulher dizia ter trabalhado em eleições passadas. Ela jurava fidelidade e manifestava até paixão pelo seu contratado. Diante dele, o oponente era um mau caráter, incapaz, traiçoeiro e sujo. Mas, na penumbra, bem naquele canto dos bastidores onde o sol raramente clareia, ela fechou, paralelamente, um acerto com o outro. Trabalhou para os dois. Depois das urnas abertas, não se sentiu constrangida. Primeiro abraçou com lágrimas nos olhos o derrotado. Dali seguiu para o local onde o vitorioso comemorava. E festejou.